Crítica


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Sinopse

Vivendo na casa que pertenceu ao seu recém-falecido pai, Jesus e Maria José têm sua rotina interrompida com a chegada de sua meia-irmã Madalena. Em meio à novidade, começam jogos perversos entre eles.

Crítica

Não há lugar como o nosso lar. A frase-chave de O Mágico de Oz (1939) adquire um papel fundamental neste filme de terror argentino, passado inteiramente dentro de uma casa. Há apenas três personagens em cena: os irmãos Jesus (Pablo Sigall) e Maria José (Valeria Giorcelli), além de Madalena (Agustina Cerviño), a meia-irmã rejeitada que retorna após a morte do patriarca, visando reclamar seu direito na herança. Talvez a palavra mais importante na frase inicial seja o “nosso”. A quem pertence o lar, no caso? Aos filhos que ficaram em casa, cuidando do pai doente, ou à filha que saiu de casa após ser expulsa? O filme explora muitíssimo bem os múltiplos símbolos associados ao lar – seja o espaço de proteção, de conforto, o núcleo-base da família, ou ainda o espaço de segredos, de proibidos, da concretização dos desejos privados, de segregação do resto da sociedade. O que acontece entre quatro paredes não diz respeito a ninguém de fora, certo? “Sabia que, se eu te matar dentro de casa, não vou preso?”, argumenta Jesus a certa altura da trama. Certo ou errado, ele transparece a convicção de que a casa corresponde um lugar onde as regras são feitas por seus moradores, e cujo poder pertence a quem ali transita. Surge entre os três personagens uma perversa batalha por controle.

Pedra, Papel e Tesoura (2019) constitui uma obra fascinada pelas triangulações. Jesus, Maria e Madalena constituem uma óbvia referência bíblica, dentro da casa repleta de quadros religiosos. Qualquer espectador com noções básicas sobre o cristianismo conhecerá o papel controverso de Madalena entre Jesus e Maria. Pedra, papel e tesoura tornam-se símbolos interessantes por serem escolhas aleatórias, mutuamente excludentes, e podendo alternar-se a cada instante – quem vence numa rodada pode perder na seguinte. As provocações entre os irmãos são muito bem representadas pela simplicidade e agressividade do pequeno jogo de guerra, onde se vence ou é vencido, mata-se ou é morto, sem a possibilidade o empate como no xadrez. Além destes, os três parceiros de Dorothy no filme clássico representam o trio central: temos o irmão sem coragem, a irmã sem cérebro, e a outra sem coração. Eles disputam, em turnos distintos, a possibilidade de interpretarem Dorothy naquele espaço, sendo o protagonista, o líder admirado pelos demais. O projeto argentino demonstra verdadeira obsessão por elementos que se repetem, numa espiral paranoica: o adaptador de celular, os sapatinhos (ora de Cinderela, ora de Dorothy), o cortador de carne, o furão, o médico que nunca aparece, a televisão cuja tela nunca é vista, o filme-dentro-do-filme cuja trama jamais se esclarece ao certo.

Os diretores Macarena García Lenzi e Martín Blousson desenham uma complexa evolução do suspense, tornando a casa um organismo vivo. Mesmo em planos fixos, a câmera explora corredores e acompanha movimentos; sem escurecer demais os cômodos (como de costume no terror comercial), a montagem sugere perigo iminente e indecifrável; sem tornar o lugar asqueroso, desenvolve um tom perturbador pelo excesso de papéis de parede, de muros descascados, de roupas em cor bege, cinza e marrom claro, dessaturadas e pálidas. A dupla demonstra perfeita coesão nas escolhas artísticas, onde cada elemento valoriza o seguinte sem chamar atenção excessiva a si mesmo: a fotografia ressalta o minucioso trabalho de direção de arte, que ajuda muito a composição da estranheza dos personagens, mergulhados numa trilha sonora discretamente infantil e dissonante, em planos levemente angulados, um pouco estranhos à altura humana e à objetiva “normal”, por meio de imagens de duração estendida ou diminuída. A direção jamais busca o choque fácil, privilegiando o som fora de quadro e a provocação sobre o “enquanto isso”, fundamental às tramas onde todos os personagens se encontram em cena o tempo inteiro. É fascinante imaginar o que Jesus estaria fazendo enquanto vemos Madalena, ou onde se esconde Maria José quando olhamos para Jesus.

A narrativa perversa, porém realista, trava contato com o fantástico assumido por meio do filme-dentro-do-filme. A obra gore, vanguardista e iconoclasta do irmão tímido e homossexual (santa ousadia, imaginar Jesus gay!) se apropria de O Mágico de Oz, da iconografia cristã, da bestialidade e de clássicos do suspense, como Louca Obsessão (1990). Nestes instantes, os diretores mergulham numa estética totalmente diferente, ao mesmo tempo brincalhona e explícita. Sem levar o sangue à narrativa principal, permitem que a metanarrativa se comunique com a outra, retroalimentando-a. Em paralelo, os diálogos pinçados de Judy Garland se comunicam com as situações vividas pelos irmãos. Há uma inteligência especial por parte da dupla de criadores em criar atritos entre som e imagem, cruzamentos inesperados de referências e ressignificações de simbologias clássicas. A narrativa se constrói pelo abismo de imagens sobre imagens, ainda que dentro de uma narrativa linear. Aos atores, resta o delicioso exercício de manipulações, onde nunca se sabe ao certo quem está tramando contra quem, em quais duplas, e com quais objetivos. Cada gesto de ajuda pode ser interpretado ao mesmo tempo como gesto de agressão.

Ao final, Pedra, Papel e Tesoura constitui um elegante tabuleiro de terror, solicitando a nossa interpretação constante quanto às atitudes dos personagens. Na primeira cena, quando Maria José assiste a O Mágico de Oz, a cena não traz nenhum estranhamento. Quando ela assista ao filme pela terceira ou quarta vez seguida, começamos e nos inquietar. Jesus traz uma aparência plácida, no entanto, a calma diante de descobertas explosivas provoca estranhamento. Aos poucos, cada irmão se torna contador de histórias, criando uma ficção para se proteger e com a qual enganar o adversário. O verbo to shoot, em inglês, é explorado em seu duplo significado quando uma espingarda e uma câmera caseira são apontadas à mesma personagem simultaneamente. Enquanto isso, não há mundo lá fora, não há vizinhos, sociedade, nem mesmo o cotidiano retratado pela televisão que só transmite Judy Garland e seus sapatinhos vermelhos. Há certa aparência de pesadelo, ou talvez purgatório, nesta esta prisão encardida onde se encerram os três irmãos, transparecendo desejos de teor incestuoso, competitivo, invejoso. A aparência de polidez do início, quando Madalena chega à casa, se desveste cena após cena, abrindo brechas graduais à barbárie. Curiosamente, o perigo não surge quando os personagens retiram suas máscaras, e sim quando colocam novas máscaras, uma por cima da outra, até não sabermos mais quem são, nem do que são capazes.

Filme visto online no 16º Fantaspoa: Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre, em julho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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