Crítica


3

Leitores


3 votos 5.4

Onde Assistir

Sinopse

O bruto, estúpido e hilário sargento-tenente-major Peçanha vai liderar seu colegas não menos estúpidos da delegacia de Nova Iguaçu na caçada ao primeiro assassino em série da Baixada Fluminense. Uma missão que pode custar caro.

Crítica

Um dos grupos humorísticos mais bem-sucedidos da internet brasileira, o Porta dos Fundos já tinha se aventurado pelo cinema. Porta dos Fundos: Contrato Vitalício (2016) não chegou nem perto de fazer o sucesso esperado. Já os especiais natalinos Se Beber, Não Ceie (2018), A Primeira Tentação de Cristo (2019) e Teocracia em Vertigem (2020) foram mais bem recebidos – inclusive ganhando prêmios e gerando diversas polêmicas com grupos religiosos que ficaram furiosos pelas sátiras de figuras bíblicas. Já em Peçanha Contra o Animal o foco não está em apóstolos embriagados, Jesus descobrindo sua sexualidade ou nas conspirações que teriam perpassado a vida do Cristo morto na cruz. O protagonista é sargento-tenente-major Peçanha (Antonio Tabet), um dos personagens recorrentes do Porta dos Fundos. Ele é um policial lotado na delegacia de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e utiliza métodos nada ortodoxos para “solucionar” crimes. A graça desse tipo autoritário está na sua total aderência aos clichês atrelados à polícia militar do estado do Rio de Janeiro – corrupta, violenta, desaparelhada e ignorante. Ele não tem qualquer responsabilidade, troca as bolas quando quer falar bonito e acaba deixando sempre visível a sua conduta errática ao tentar explicar como chegou a suspeitos e culpados. É um tipo que funciona bem melhor num formato mais ligeiro e incisivo de comédia.

Em Peçanha Contra o Animal esse policial politicamente incorreto lida com um misterioso assassino em série que aterroriza Nova Iguaçu, o chamado Animal. E a primeira cena do longa-metragem já dá notáveis indícios de um desacerto no timming das piadas em torno de Peçanha, elas que precisaram ser repensadas para se adequar a um filme com um pouco mais de uma hora de duração. Peçanha e Mesquita (Pedro Benevides) ficam supondo absurdos diante de mais um cadáver. E ali é evidente que o roteiro estica determinadas sacadas para ver se elas duram para além de alguns segundos – como quando os policiais discutem a respeito da causa da morte de alguém que está claramente com uma faca enfiada na barriga. A ideia é reforçar/exagerar a absurda incapacidade desses homens encarregados de zelar pela paz da população, mas a repetição sem variações não ajuda para a obtenção de um resultado cômico duradouro. Pelo contrário. A reiteração da “burrice corporativa” deixa a cena gradativamente sem graça. A perseguição ao matador é apenas uma desculpa, um fio frágil que interliga as observações sarcásticas sobre aspectos da sociedade brasileira, mais especificamente atrelados aos estereótipos da vida suburbana. Há também uma clara vontade de brincar com a lógica dos filmes policiais norte-americanos nos quais uma dupla precisa investigar algum crime.

Esse desejo de satirizar exemplares estadunidenses está presente na dinâmica entre Peçanha e Mesquita. Mas, em Peçanha Contra o Animal ninguém se enquadra nos papeis do bom e do mau policial. Ambos são simplesmente incompetentes. O protagonista sobressai por ser autoritário, agressivo e impor uma superioridade que na verdade nem existe. Já Mesquita é o parceiro que acata as orientações do amigo (não sendo menos obtuso do que ele) por uma questão de subserviência. Nessa busca pelo sujeito que está tocando o terror na Baixada Fluminense, os dois vão encontrar inúmeros personagens peculiares, o que permite o aparecimento de quase todo o elenco fixo do Porta dos Fundos. Há atrizes talentosas, como Noêmia Oliveira, que têm apenas uma fala – aliás, grande parte dessas participações especiais se resumem a vislumbres rápidos no estilo “piscou, perdeu”. E os que não estão em cena acabam “aparecendo” de alguma forma, como Gregório Duvivier e João Vicente de Castro que fazem suas entradas como vítimas fotografadas depois de serem assassinadas. Quanto ao roteiro, ele é uma colagem de esquetes interligadas de maneira muito frágil. Em prol da comédia ligeira que tornou o Porta dos Fundos célebre na internet, o cineasta Vinicius Videla se contenta em somar as situações sem que essa sucessão apressada de episódios superficiais tenha um efeito contínuo.

Peçanha Contra o Animal possui uma estrutura narrativa parecida com a dos especiais de Natal do Porta dos Fundos. A premissa (aqui a necessidade de pegar um assassino em série) serve somente como um elo frágil entre os pequenos caquinhos recheados de pessoas conhecidas fazendo pontas. Claro, todos os fragmentos são perpassados pela ignorância atroz de Peçanha, personagem sintomático da situação da segurança pública nas grandes cidades. Os poucos bons momentos do longa-metragem ficam a cargo da essência desse homem cuja existência e posição simbolizam a tragédia cotidiana do brasileiro: se ele é o incumbido de garantir a paz e a tranquilidade do cidadão comum, então pode-se dizer que o cidadão comum está essencialmente ferrado. Há outros apontamentos que poderiam tornar o besteirol menos banal e inofensivo, como a atuação dos líderes religiosos picaretas, a transformação da crônica policial em manchetes engraçadas pela imprensa, as regras de funcionamento de áreas menos privilegiadas das áreas urbanas, a ineficiência dos agentes da lei e as conexões destes com o submundo. No entanto, Vinicius Videla prefere simplesmente fazer uma coleção de esquetes cuja celeridade não permite que as situações minimamente decantem, pois é “necessário” partir rapidamente à próxima. Acaba que até mesmo a capacidade de Peçanha de ironizar lógicas da vida pública do Brasil é fragilizada. Num formato longo, Peçanha logo perde a graça por ter um repertório curto que logo se esgota.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *