Crítica


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Sinopse

O Jardim Panorama resiste entre as marcas do passado e as incertezas do futuro. Rasgada ao meio por um monstro há mais de dez anos, a comunidade é vizinha de um bairro nobre da cidade de São Paulo.

Crítica

É um prazer se deparar com diretores apaixonados pela geografia das imagens. Alguns cineastas apreciam o espaço a ponto de transformá-lo em verdadeiro protagonista. Nestes casos, os seres humanos se perdem em paisagens gigantescas; transitam por todos os cômodos de uma casa ou ruas de uma cidade; espremem-se num local minúsculo junto aos móveis. Em Paranorama (2021), o diretor Alexandre Wahrhaftig e a diretora de fotografia Alice Andrade Drummond transmitem um verdadeiro encanto por este bairro concreto, repleto de paredes e tijolos, mas também mítico, pois em vias de extinção, prestes a desaparecer devido à especulação imobiliária. “Uns falam que isso aqui não existe, que não existe no mapa, que nunca existiu. A gente não existe, mas estamos aqui”, explica um morador. É estranha a necessidade de lembrar aos outros de sua existência, porém o documentário consegue resgatar o senso de absurdo e o posicionamento político decorrente desta crise. Por isso, a obra resulta na visita a uma comunidade real e imaginária, tão comum quanto especial, simbólica, pois representativa de um fenômeno que ultrapassa sua existência. Além disso, o bairro e o filme possuem este nome cinematográfico, dedicado à espacialidade, à capacidade de varrer os olhos e abraçar o horizonte: “panorama” adquire significados múltiplos que se retroalimentam.

A fotografia desempenha um trabalho primoroso. Primeiro, pelo posicionamento humano: ao contrário de diversas obras onde a câmera espia os indivíduos à distância, numa pretensa objetividade, e de muitas outras que se aproximam demais, interferindo e prejudicando a naturalidade do meio, Drummond encontra uma postura preciosa. Aqui, a câmera se converte em personagem suplementar: sentamo-nos à altura dos colegas que compõem um slam sobre suas vivências, e tomamos o café com a mulher em sua casa na condição de convidados. A imagem, e o espectador, por extensão, fogem tanto ao decoro da frieza excessiva quanto ao fetiche de mergulhar o público numa realidade diferente da sua. A direção escuta, como se estivesse pronta para lançar suas perguntas em seguida — há um aspecto de conversa de igual para igual entre o dispositivo e os personagens. Os quadros fixos permitem que o olhar descanse e se foque apenas no fator humano: quando eles saem de quadro para buscar algum objeto, esperamos diante do cômodo vazio como visitas bem comportadas, tendo o som fora de quadro para nos guiar. O enquadramento fixo e longo se alterna com as caminhadas por ruas e avenidas, quando a imagem acompanha os habitantes do Jardim Panorama, filmando-os de costas. O cinema se condiciona à fala e aos movimentos destas pessoas, nunca o contrário. 

Segundo, em contraste com a realidade bruta da comunidade, o longa-metragem encontra saídas lúdicas para representar a vida daqueles cidadãos. Os protagonistas se transformam em criadores quando desenham a planta baixa de suas propriedades dos sonhos (“Mas isso não existe? É a casa que você imagina?”, confirma o cineasta), dividindo em duas folhas cortadas a parte que permanece real, e aquela devorada pelo tempo. Uma mulher precisa de papel para escrever poemas, o outro busca um aparelho de som para gravar suas músicas. Eles estão à procura de formas de expressão, dentro das quais se inclui o cinema — este não é um projeto sobre os moradores, e sim com os moradores. O tempo da escuta, e o espaço fornecido para cantarem e agirem livremente constitui uma forma louvável de respeito por parte dos autores. A esperta montagem de Lia Kulakauskas efetua uma espécie de “plano e contraplano” com dois colegas sentados lado a lado, focando-se ora em um, ora em outro, embora estejam conversando numa troca equilibrada e veloz. Esteticamente, estabelece-se um dispositivo instigante, no qual o retrato político provoca a reflexão e os sentidos. Há mais a ver, em Panorama, do que as fronteiras e vielas. Às vezes, presente e passado se alternam num simples corte da edição, sem aviso nem letreiro explicativo. Surge uma sofisticada narrativa de fluxo espaçotemporal, escondida por trás de uma aparência discreta.

Talvez este aspecto “humilde” forneça a impressão errônea de um filme convencional, mero “documentário de observação” ou discurso social de constatação de uma comunidade em perigo. Na Mostra de Tiradentes, esta iniciativa chama menos atenção do que obras ostensivamente “autorais”, que gritam suas mazelas, picotam a montagem, saturam a banda sonora de trilhas, e a imagem, de filtros — vide Sessão Bruta. Esta obra oferece uma forma polida de autoria, menos histriônica, porém consciente do potencial subversivo da própria linguagem cinematográfica. Para uma temática acerca de espaços e limitações, nota-se a inteligência das molduras-dentro-da-moldura, com composições valorizando batentes de portas e janelas, além da sucessão de fotografias antigas sobrepostas ao som de uma demolição futura. Natureza e arranha-céus se confrontam com dois rapazes sentados à beira do riacho, embora ainda estejam no aglomerado urbano. As contradições da cidade se traduzem numa abordagem tão madura, no sentido de avessa a sentimentalismos fáceis, quanto inventiva. A linguagem do cinema se converte em ferramenta empregada para se obter um efeito desejado, ao invés de finalidade em si própria. Resta esperar que Panorama encontre em outros festivais, e no circuito comercial, todo o afeto e atenção que merece.

Filme visto online na 25º Mostra de Tiradentes, em janeiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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