Crítica


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Sinopse

Um coletivo de artistas transexuais, travestis e não-binárias discute o processo criativo de uma obra subversiva e representativa de seu lugar de fala. Corpos políticos e artísticos dialogam sobre feminismo, preconceito e liberdade de expressão.

Crítica

O documentário mineiro Sessão Bruta (2021) sabe muito bem o que não deseja fazer no cinema. As artistas se posicionam de maneira firme contra o retrato objetificado de indivíduos travestis, transexuais e não-binários. Elas se opõem a longas-metragens tendo-as como tema de estudo, porém na perspectiva de mulheres brancas; além de rejeitarem a militância hegemônica, ou seja, branca e cisgênero. O coletivo As Talavistas e ela.ltda, responsável pela obra, acredita de maneira bem fundamentada que uma identidade marginal necessita de uma forma artística marginal, razão pela qual o gênero experimental se adequa melhor às suas vivências do que as tradicionais entrevistas, narrações e demais recursos do cinema documentário explicativo. As autoras possuem a certeza de que seus corpos constituem ferramentas políticas — existe um valor inerente à apresentação de jovens negras e travestis num filme criado pelas próprias. A imposição natural e orgulhosa de suas roupas, das unhas pintadas e cabelos coloridos, vai além de mero gesto de afronta, participando ao processo necessário de naturalização da alteridade. Estas pessoas precisam mostrar que seus corpos são culturais, sociais, e vêm carregados de intensa reflexão político-social por trás dos cachos descoloridos e dos shorts justos. Existir e resistir tornam-se atos de luta.

Por trás de tamanha desconstrução, resta questionar, no entanto, o que o longa-metragem oferece de construção. Em outras palavras, o que se ergue por cima dos escombros? As personagens possuem uma fala complexa, bem refletida e articulada, perceptível nas diversas sequências em que discordam uma da outra. As compreensões plurais acerca do feminismo, do protagonismo trans e da recusa da heteronormatividade fornecem um banquete de reflexões ao espectador. Em paralelo, permitem o humor e a espontaneidade, quando brincam de interrogar a inteligência artificial dos sistemas operacionais, ou sugerem a representação de uma serpente travesti tentando Eva no mito bíblico. As protagonistas navegam entre amplos fatores socioculturais e interações cotidianas, combinando o público e o privado, o coletivo e o individual. O discurso articula um fluxo frenético de ideias dignas de uma contemporaneidade fluida, para a qual manifestos políticos possuem o mesmo valor de memes e piadas com a cultura pop. A experiência identitária atravessa uma montanha-russa de dores e prazeres, de certezas e dúvidas, condensadas numa divertida conversa entre amigas. O projeto jamais se responsabiliza por trazer ensinamentos morais ao espectador — ele levanta boas perguntas, ao invés de apresentar respostas delimitadas.

Em contrapartida, o referencial imagético às discussões se limita ao caos criativo. Sessão Bruta revisita a fronteira fundamental entre liberdade criativa e coesão/coerência. Por um lado, as artistas podem fazer tudo, devido à sua condição de criadoras contestando regras preestabelecidas. Por outro lado, isso não significa que devam fazer qualquer coisa, que todas as escolhas se equivalham em força, valor ou significado, nem que resultarão no melhor suporte estético às ideias veiculadas. A estrutura resulta tão dispersa que beira a aleatoriedade: a câmera treme à esquerda e à direita, foca-se em planos de detalhe dos corpos, enquanto a montagem aposta em câmeras lentas, na pixelização assumida do digital de baixa qualidade, nos diversos filtros verdes, azuis e rosas, nas molduras sobrepostas à imagem. O material captado se converte numa tela em branco a partir da qual se pode decorar, ornar, pintar, cortar e colar. A imagem chacoalha conforme a banda sonora incorpora ruídos e se sobrepõe à balada romântica Because You Loved Me, pelo simples fato que as criadoras podem fazê-lo. “E por que não?”, parece nos questionar o filme a cada instante. O resultado se sucede sem necessariamente se desenvolver. A afronta se aproxima de uma lógica retórica: o simples fato de não filmar, enquadrar, montar som e imagem com a estrutura adotada pela maioria dos longas-metragens aparenta embutir um aspecto de força e rebeldia ao filme. Entretanto, os exercícios pirotécnicos se desgastam com rapidez.

Por fim, o projeto oferece uma performance, um gesto de ocupação de espaços, de tela, de público. Os espectadores da Mostra de Tiradentes têm acesso a vozes, corpos e reflexões ausentes das plataformas habituais e dos circuitos comerciais. Os artistas se transformam nos autores e na obra, eles representam criadores e criaturas. Ninguém precisa efetuar uma magnífica apresentação de dança, ou entoar um manifesto político longamente elaborado — o mérito passa longe da meritocracia. A divertida perambulação urbana, com ensaios engraçados junto ao caminhão de lixo fornecem a impressão de uma obra ao mesmo tempo popular e erudita, acessível e hermética. “Porra, nada mais faz sentido nessa merda”, contesta uma personagem, num gesto que poderia se estender, com orgulho e autoconsciência, ao projeto como um todo. É preciso desconstruir o mundo, incluindo a percepção tradicional dos sentidos. As jovens desejam erguer sua própria narrativa, falar em sua voz, estampar a imagem. Resta a indecisão quanto à interpretação da obra, entre acolhê-la calorosamente pelo valor da liberdade de escolhas, e rejeitá-la pela ausência de um conceito aprofundado, de uma intencionalidade amadurecida. O coletivo proporciona uma obra de urgência, em tom múltiplo, colorido e barulhento, com todos os aspectos positivos e negativos que esta decisão pode implicar.

Filme visto online na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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