Crítica


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Sinopse

Em meio a uma crise pessoal, Roxana se apaixona por um recordista mundial de mergulho. Depois de um início promissor, surgem pequenas rachaduras que ensaiam minar esse envolvimento que parecia tão sólido.

Crítica

É curioso que nos últimos tempos sejam recorrentes as histórias protagonizadas por mulheres fragilizadas e/ou em situação de risco que são disputadas por dois arquétipos masculinos: o intenso/ameaçador (sexo) e o sensível/acolhedor (amor). Curioso, pois surge como uma espécie de contranarrativa do feminismo, no sentido de contrariar representações de mulheres autônomas, já que essas donzelas em perigo existem apenas de acordo com os sujeitos que as disputam. Elas frequentemente aceitam jogos sexuais/amorosos em que a ideia da subjugação ao homem acaba romantizada e erotizada. Vemos isso nas sagas Crepúsculo, After, 365 Dias e em exemplares esporádicos que apostam nas variações dessa protagonista entre amores que tendem a trata-la como rainha entronada, mas incapaz de existir além dos romances flamejantes. Paixão Sufocante parte da trágica história real envolvendo uma mergulhadora profissional que teve destino fatídico depois de se envolver com um campeão mundial do esporte. Aliás, antes de vermos a adulta transitando submersa pela imensidão azul do mar, o cineasta David M. Rosenthal mostra um pequeno vislumbre dela ainda criança, enfatizando a cicatriz no pulso para anunciar: a saúde mental dessa personagem é frágil desde muito cedo. Adiante, Roxana (Camille Rowe) se encanta por um instrutor bonzinho, mas prefere engatar o romance tórrido com o bad boy.

O que mais diferencia Paixão Sufocante dos demais filmes que se valem da ideia da mulher dividida entre dois amores arquetípicos – e isso aparentemente tem apelo especial para uma parcela significativa do público, vide o sucesso dessas produções – é o tom de alerta. Por mais que Roxana seja condescendente com alguns rompantes veementes do vaidoso Pascal (Sofiane Zermani), a câmera geralmente observa o homem com prudência e desconfiança, o que lança sobre ele uma sombra indicativa. Já nos instantes em que Pascal se comporta como um cavalheiro, apaixonado e abundante de voltagem erótica, o filme volta a flertar com uma idealização do rapaz que (re)assume o papel da masculinidade protetora. O sujeito seria o provedor escudeiro, aquele que coloca a amada sob suas asas acolhedoras, a incentiva e ainda tem disposição para ser sexualmente intenso e competente. Isso, além de manter um desempenho incrível no esporte. Já o “bonzinho”, Tom (César Domboy), é escanteado pela história até praticamente se tornar um mero detentor de olhares preocupados à jovem por quem se interessou antes. Não há sombra da disputa, sequer tensão erótica entre Tom e Roxana, apenas um minúsculo resquício do que nunca aconteceu. Claro, até o momento em que as coisas voltam a esquentar. Enquanto isso, são costuradas nessa trama uma série de simbologias mais ou menos óbvias.

Sempre tem alguém para falar sobre os perigos de mergulhar nas águas (estabelecendo uma metáfora repetitiva sobre as profundezas de um relacionamento com alguém repleto de áreas sombrias); e a respeito do próprio “prender o fôlego”, ação literal necessária a quem pratica a apneia (e forma figurativa de falar sobre o limiar estreito entre vida e morte). Paixão Sufocante poderia distribuir/elaborar melhor essas tantas alegorias e não ficar insistindo nas mesmas entremeadas por belas imagens do fundo do mar. Aliás, David M. Rosenthal até ensaia investir na ambiguidade do cenário subaquático (calmo, porém sempre perigoso), mas acaba fazendo do espaço um ambiente que confere beleza ao longa-metragem. Outro problema fundamental é a recorrência às mudanças bruscas de comportamento. Por exemplo, de uma hora para outra, Pascal deixa de ser o garanhão apaixonado e se torna um escroto egoísta capaz de qualquer coisa para garantir o seu status de campeão no amor e no esporte. O filme erra ao não desenvolver como deveria as nuances dessa personalidade obsessiva, por isso transformando o personagem num monstro insensível sobre o qual paira gradativamente a neblina de uma grave suspeita. Enquanto a história avança implicando conflitos banalmente, figuras humanas perdem densidade. Estados psicológicos e traumas são soterrados numa narrativa que se interessa pelo ciúme.

A breve conversa de Roxana com a mãe depois de um feito esportivo é, talvez, o grande exemplo de como essa produção trata as complexidades de modo displicente. Em pouco menos de três minutos, há ruídos demais numa interação marcada por constantes alterações de rumo e dinâmicas que não parecem realmente críveis. Ainda que enverede pela denúncia dos efeitos nocivos de um relacionamento abusivo, o longa-metragem francês vai perdendo textura e matizes pelo caminho, sobretudo as que dizem respeito à comprometida saúde mental da protagonista. David M. Rosenthal não se decide entre fazer um filme sobre um relacionamento tóxico ou a respeito de uma mulher mentalmente fragilizada presa num relacionamento tóxico. São coisas diferentes. Atirando para todo os lados, ele ora investe na propensão de Pascal à agressividade, ora olha com mais atenção à maneira como Roxana lida com tudo isso. O acolhimento da "forasteira" na equipe que a via com desconfiança é repentino, bem como a carreira destacada dessa mulher numa atividade que geralmente requer anos de prática até que surjam resultados tão impressionantes. Paixão Sufocante começa afirmando que se baseia em fatos e termina dizendo que se trata de uma ficção: “qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência”, mesmo mostrando a foto da mergulhadora que inspirou a história. Contradição ou medo de processos, afinal de contas é pintado um quadro em que deve ter acontecido mais um caso de feminicídio?

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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