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Sinopse

Uma investigação sobre a política de um filho apenas por casal, adotada na China. Tal prática moldou a vida de milhares de pessoas. Vítimas e instigadores de atos violentos contra famílias falam da realidade que gerou inúmeras crianças abandonadas no país, especialmente do sexo feminino.

Crítica

Um letreiro relembra a existência na China, entre 1979 e 2015, da política do filho único. Diante da miséria geral, acreditou-se que a redução forçada da população implicaria num aumento de renda por família. One Child Nation articula então breves imagens de arquivo antes de mergulhar na vida da diretora Nanfu Wang, ela mesma fruto desta política. Os primeiros anos da regra imposta pelo Estado caminham em paralelo com a infância da diretora e, a partir daí, os dois aspectos jamais se separam: a esfera privada comenta a esfera pública, uma servindo de exemplo, ou de contraponto, para a outra. Ao invés de analisar grandes dados socioeconômicos e fornecer passagens políticas em nível macro (a mudança de líderes, o afrouxamento das leis ao longo das décadas), Wang coleciona episódios sentimentais relacionados aos evidentes abusos de direitos humanos.

De certo modo, este documentário remete à estrutura do brasileiro Democracia em Vertigem (2019), também comentado por uma jovem diretora que enxerga em seu exemplo um reflexo da nação inteira. Estão presentes a narração em off, tão politicamente consciente quanto emotiva, as entrevistas com os próprios pais e parentes, a mistura de material de arquivo do país com as fotos e vídeos caseiros da infância. Para se contrapor ao discurso oficial de que a política seria indispensável, e portanto justa, a diretora coleciona exemplos de mulheres obrigadas a abortar ou esterilizadas à força, além daquelas que abandonaram as filhas recém-nascidas (porque se privilegiava os meninos), e de jovens buscando irmãos gêmeos separados no nascimento e enviados a famílias de outros países, sob o disfarce de órfãos. Em oposição ao governo, Wang e a co-diretora Jialing Zhang colecionam histórias de indivíduos, pessoas que não tinham voz para discordar das autoridades décadas atrás.

O resultado desta escolha é a sequência impactante de narrativas de abandono, morte, ilustradas por cenas de fetos abandonados em lixeiras e pais chorando ao se lembrarem de seus atos. As cineastas buscam a conscientização política por meio da emotividade - seja os sentimentos de raiva, culpa, pesar, arrependimento. Assim como Petra Costa no filme brasileiro, busca-se exemplos de oposição política dentro da própria família: Wang é evidentemente contrária à política do filho único, embora sua mãe o defenda. Uma antiga funcionária do Estado se arrepende dos abortos que foi obrigada a provocar, enquanto a parteira do bairro de Wang se orgulha até hoje dos sacrifícios feitos em nome de um bem maior. Através desta estratégia, contrapõe-se a família ao Estado, uma na posição de vítima, e a outra, de algoz. Desta escolha nasce a sensação constante de um projeto não apenas moral, mas moralista.

Por mais louvável que seja a denúncia dos abusos pavorosos, eles não impedem o filme de manifestar um sentimento contrário a tudo o que a China representa. Enquanto repudia o aborto forçado em mulheres, o filme sugere que todo aborto (mesmo aquele desejado) representaria um assassinato de bebês. Enquanto mostra a miséria da irmã gêmea deixada na China, sonha com a irmã que teria “leite e biscoitos” no café da manhã em solo americano. Este é um projeto norte-americano, dirigido por mulheres exiladas nos Estados Unidos, com financiamento norte-americano, e não deixa de transmitir a ideia de superioridade em relação ao país oriental percebido como seu exato oposto. É importante que medidas fracassadas como a política do filho único sejam esmiuçadas e denunciadas, ainda que se conteste o oferecimento do modelo capitalista como única alternativa viável. A simplificação da análise política se percebe pelas entrevistas de natureza retórica, quando a diretora se coloca em cena e questiona: “Quando você via uma casa demolida, você achava cruel?” ou “Foi difícil para você entregar a sua filha?”. Nestes casos, é óbvio que a diretora não espera escutar algo novo às suas perguntas, porque elas induzem respostas e trazem julgamentos morais embutidos.

Ainda que a premissa tenha permitido estabelecer comparações com Democracia em Vertigem, os métodos das diretoras nos aproximam muito mais de cineastas radicais como Michael Moore, um progressista que defende ideias importantíssimas através de meios questionáveis. Em seus documentários, Moore recorre à ridicularização e às simplificações grosseiras da oposição entre Republicanos e Democratas. Wang e Zhang possuem um discurso mais delicado, ainda que igualmente manipulador, privilegiando o sentimental, o espetacular, as imagens de fetos mortos em close-up. Partindo de uma narrativa válida e urgente, chega-se à construção análoga às fotos de pulmões corroídos no verso de maços de cigarro, ou seja, a busca da conscientização pelo choque. Assim como a campanha dos cigarros, não deve provocar resultados eficazes. One Child Nation constitui um caso em que a relevância do tema busca legitimar qualquer forma empregada para debatê-lo. Ora, tanto na estética quanto na política, seria perigoso acreditar que os fins justificam os meios.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
4
Chico Fireman
6
MÉDIA
5

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