Crítica


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Sinopse

Aleksandra Pokrovskaya sempre foi uma das maiores esgrimistas do mundo, tendo vencido uma medalha de prata na Olimpíadas e comandado a equipe russa na modalidade. Próxima da aposentadoria, ela tem seu posto desafiado pela chegada de Kira Egorova, uma adolescente rebelde e talentosa que ascende rapidamente no esporte. Às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, elas brigam pelo tão sonhado ouro que pode transformar a vida das duas.

Crítica

Na Ponta (2020) oferece à esgrima um tratamento digno dos blockbusters. Sabe-se que a linguagem cinematográfica é capaz de transformar práticas pouco dinâmicas visualmente em competições empolgantes (o xadrez em O Gambito da Rainha, 2020, a datilografia em A Datilógrafa, 2012). No caso da esgrima, apesar da presença dos sabres favorecendo a tensão, o rosto coberto das atletas representa certa dificuldade ao tratamento visual. Ora, o diretor Eduard Bordukov encontra soluções dignas de projetos de super-heróis: durante as disputas, a imagem atravessa o tecido da jaqueta durante o golpe, penetra as máscaras para observar as expressões das esportistas, investe em inúmeras câmeras lentas, ao passo que o placar flutua no ar. Câmeras subjetivas apontam as armas em direção ao público, enquanto o extremo plano de detalhe revela a extremidade do sabre chegando a poucos milímetros de distância da adversária, em câmera lentíssima. As protagonistas Aleksandra Pokrovskaya (Svetlana Khodchenkova) e Kira Egorova (Stasya Miloslavskaya) retiram as proteções para se encararem, e então saltam, gritam, reclamam. Para aumentar o suspense nas disputas, são inseridas provocações pessoais, lesões comprometedoras, decisões controversas dos árbitros. Somando-se à trilha sonora, à montagem fragmentada e aos efeitos sonoros aumentados, o cineasta dispara uma artilharia pesada para converter a esgrima num campo de guerra.

O resultado dispensa sutilezas, abraçando a lógica do cinema comercial. Em outras palavras, investe em sentimentos epidérmicos ao invés de despertar profundas reflexões. O roteiro privilegia a estrutura das perfomances cruzadas, tão comum em Hollywood: a exemplo das quatro versões de Nasce uma Estrela, uma pessoa experiente, porém em decadência, se vê ameaçada por um novato em ascensão vertiginosa. Assim, aproximam-se através de movimentos de admiração, inveja, ódio, amizade e amor. A divulgação do filme russo sugere que as esgrimistas se detestarão até se arruinarem mutuamente, promovendo uma batalha desleal entre duas mulheres. Contrariando as expectativas, o discurso se revela mais complexo: partindo da rivalidade inicial, elas descobrem que atingem seu melhor nível esportivo quando possuem a adversária para motivá-las. As heroínas formam uma aliança tão delicada quanto eficiente, visando o sonho comum de se enfrentarem numa final de Olimpíadas. Para isso, precisam garantir que ambas cheguem à disputa final. A narrativa ameaça transformar o treinador Gavrilov (Sergey Puskepalis) num vilão impiedoso, porém recua do maniqueísmo. Ela sugere a possibilidade de ciúmes dentro da equipe, antes de optar pela solidariedade entre as meninas. Aos poucos, o trajeto desvia das armadilhas do gênero.

Um dos principais valores defendidos diz respeito ao mérito pelo esforço. Embora Aleksandra e Kira sejam muito talentosas, Na Ponta sugere que os resultados excepcionais se justificam por jornadas extenuantes de treinamentos, enfrentando a dor e a pressão psicológica. Longas cenas são dedicadas à prática obsessiva no ginásio oficial, nos ginásios improvisados e dentro de casa. Os relacionamentos com maridos, namorados e pais ficam em segundo plano: o foco se encontra na superação de si própria. Por isso, a jovem lesionada precisa encontrar uma maneira de vencer sem forçar o joelho; e a experiente atleta busca reconquistar a espontaneidade perdida. Os criadores defendem um equilíbrio obtido pela convivência entre diferenças: progressivamente, a imprevisível Kira, comparada a uma pantera, doma seus instintos, enquanto a mentora reencontra a fúria necessária para brigar pelo pódio. É compreensível que a Rússia invista neste projeto, afinal, o país se mantém há anos como a maior nação mundial na esgrima, tendo dominado o quadro de medalhas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, mencionados na história. A trama baseada em fatos reforça o patriotismo, o talento e a garra dos esportistas locais, ignorando as acusações de doping que mancharam a imagem do país nas disputas mundiais - exceto pela discreta insinuação de um jornalista estrangeiro, duvidando da recuperação tão rápida de Kira. “Nós temos os melhores médicos do mundo”, ela retruca, cinicamente. 

Em se tratando de um filme de personagens, as protagonistas são bastante solicitadas pela direção. A câmera acompanha seus rostos e corpos durante a integralidade dos planos: são elas que movem a narrativa, cena após cena. A trajetória neurótica das atletas se reflete no trabalho impecável de Khodchenkova e Miloslavskaya, em chaves opostas de atuação, e por isso mesmo, pertinentes ao atrito buscado pelo diretor. A primeira sustenta uma postura ereta, além de um decoro compreensível para alguém confortável em sua posição de liderança há tanto tempo. Já a segunda se aproxima de um animal selvagem, dotado de mais vigor do que precisão. A atriz adolescente despeja suas falas com raiva, atropelando-se como convém à garota afobada. Bordukov reserva preciosas sequências em que Aleksandra e Kira apenas se observam, revelando em expressões a variedade de sentimentos nutridos pela oponente. Elas se tornam verossímeis, multifacetadas, além de convincentes na arte da esgrima. O espectador aguardando uma disputa cega e violenta, nos moldes de Tonya Harding, ou uma amizade duradoura entre antigos rivais, em estilo Rocky, encontrará um meio-termo plausível.

Ao público brasileiro, o longa-metragem russo guarda inesperadas semelhanças com o recente 4x100: Correndo por um Sonho (2021), de Tomás Portella. A estrutura se revela quase idêntica: a história começa e termina com uma competição, passando à rivalidade entre atletas nacionais, às lesões comprometedoras perto da competição, às classes sociais opostas entre as protagonistas, à disputa interna transformada em cordialidade, ao fantasma da “última Olimpíada” para a veterana, ao veto do treinador à competidora machucada. Esta proximidade transparece a rigidez dos códigos inerentes ao gênero do “filme de esporte”, e ao sucesso destas fórmulas. Os dois dramas soam concebidos para reforçar um sentimento nacionalista, elegendo novos heróis em modalidades à margem das práticas midiáticas. Na Ponta se encerra como uma produção eficaz dentro de um formato padronizado, dispensando a inovação ou a subversão de expectativas. É fácil antecipar a disputa final (alguém duvidava deste desfecho?), no entanto, Bordukov o concretiza com competência - felizmente, as câmeras lentas e interferências de pós-produção diminuem no clímax. O filme constitui um belo projeto do meio, visando o contato com o grande público e com os críticos enquanto evita os estereótipos fáceis do cinema popularesco.

Filme visto online no 2º Festival de Cinema Russo, em setembro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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