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Sinopse

O amor perdido e a crença no poder da magia, das cartas e dos búzios para trazê-lo de volta. Para abordar esse universo, quatro personagens relatam suas desventuras amorosas e são colocados frente a frente com cartomantes e videntes que poderão apontar uma saída para suas vidas.

Crítica

O filme parte de um curioso jogo de cena. Atores conhecidos se encontram com cartomantes e videntes, cujos rostos desconhecemos, e expõem as suas dores amorosas. William Muniz, Danny Barbosa, Marcélia Cartaxo e Zezita Matos lamentam os namorados abusivos, aqueles que os enganaram, que os trocaram pelas ex-namoradas, que nunca estiveram presentes nos momentos de dificuldade. Os atores se mostram reféns destas paixões antigas, pedindo que os santos intercedam a favor da união, mesmo diante de conselho em contrário. Ora, os atores estariam discursando sobre suas vidas pessoais de fato? Seriam relatos de personagens, dentro de um mecanismo de falso documentário? Em última instância, importaria determinar a fronteira entre os dois? O diretor Bertrand Lira se aproveita do que cada linguagem tem a lhe oferecer: do documentário, extrai a aparência de veracidade, e da ficção, aproveita o controle sobre as luzes, sobre o ritmo e as falas. Há algo muito sedutor no aparente testemunho de atores abrindo seus corações de maneira tão franca, expondo as fraquezas em episódios íntimos. O privado e o público se chocam de maneira interessante por meio da linguagem.

Ao contrário do Jogo de Cena (2007), no entanto, o princípio do hibridismo dentro da metalinguagem não se desenvolve. Em seu projeto, Eduardo Coutinho sugeria inicialmente a veracidade absoluta, para então sugerir a completa interpretação, e finalmente nos mergulhar num âmbito que remetia à própria função do ator enquanto criador. O espectador era convidado a participar do jogo de adivinhações. O projeto de 2018 preserva a noção do cartomante enquanto contador de histórias: reais ou não, ele nos fornece invenções que estamos dispostos a absorver, através da mesma suspensão da descrença aplicada à ficção cinematográfica. No entanto, uma vez apresentada a configuração da narrativa, ela será a mesma até a última cena. A estrutura se mantém pela alternância do confessionário (seja à suposta voz off do diretor enquanto entrevistador, seja aos cartomantes), em histórias que resultam muito semelhantes entre si. Os protagonistas transparecem a mesma submissão a amores passados, o mesmo abandono por homens que marcaram as suas vidas (todos os protagonistas, incluindo as duas mulheres cis, a mulher trans e o homem cis, se relacionam com homens), o mesmo teor de sofrimento. Por mais louvável que seja a naturalização dos afetos LGBTQ, colocados no mesmo patamar dos afetos heterossexuais, eles se transformam numa repetição de lamúrias semelhantes em tom cenário e iluminação. As esquetes poderiam ser intercambiáveis, uma vez que não se sustenta a impressão de uma narrativa caminhando a algum ponto preciso.

Em paralelo, a presença dos personagens dentro desta ficção soa desequilibrada. William Muniz, transbordando de carinho em cada fala, torna-se o personagem principal, talvez ao lado de Danny Barbosa. Marcélia Cartaxo possui participação mais discreta, ainda que tenha direito a sua cena-performance individual, diante do espelho, algo que Zezita Matos não recebe. Já Verônica Cavalcanti se torna um corpo silencioso, escutando as interpretações dos videntes sem qualquer reação. Por que alguns teriam tanto tempo em tela, enquanto os outros são restritos a uma presença emudecida? Muniz inclusive ganha a materialização de seu amor impossível, o Pântano (Afrovalter). O personagem surge em cenas externas, desenhando a solidão das cidades, enquanto outros ficam presos aos cenários quase idênticos. Nos instantes mais abertamente fictícios, Muniz e Barbosa observam seus possíveis amores saindo com outra mulher num prostíbulo qualquer. A cena interessa pelo teor kitsch e melodramático, assumindo uma ponta de humor. No entanto, esta autoironia não contamina o restante do projeto, que escuta os traumas de relacionamentos com o carinho de um terapeuta gentil.

O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira) se aproxima do comentário sociológico sobre o imaginário popularesco envolvendo búzios, cartas, bares, inferninhos, além de pessoas rejeitadas pela sexualidade e pela renda. No entanto, a a marginalidade se manifesta como tema, e não como estética, a exemplo do que ocorre, por exemplo, nas ficções Amor, Plástico e Barulho (2013) e Inferninho (2018), ou no documentário Rua Guaicurus (2018), que brincam com a distância entre o centro e a margem, entre o popular e o erudito, entre a estética “elegante” e aquela considerada depreciativa. A trilha sonora, com seus fados e canções melosas de amor, aponta para esta direção, ainda que timidamente. Ao fim, não há diferença real entre a abordagem de cada cartomante, nem entre as respostas dos clientes. As ruas vazias, com anônimos podendo corresponder aos rostos dos amantes abandonados (bela sugestão da montagem), tampouco adquirem função narrativa mais potente para além da cena de prostituta e cliente se beijando numa esquina. Aos atores, oferece-se o prazer de uma composição falso-verdadeira, ou seja, de comporem personagens minimamente calculados para adquirirem a aparência de descuidados.

Marcélia Cartaxo, de olhos e cabelos atípicos, produz certa tensão no ar cada vez que aparece em cena – afinal, o cinema brasileiro já sabe o que esperar quando Macabéa frequenta a cartomante -, mas seria tentador vê-la, assim como Matos e Cavalcanti, em seus próprios delírios cênicos, ganhando as ruas, cantando ou frequentando os prostíbulos com os demais personagens. Resta a impressão de um filme que, partindo de uma premissa ousada enquanto conceito e linguagem, contenta-se com uma única variação possível da fricção documental-fictício, sem expor as inúmeras possibilidades de metáfora, poesia e lirismo visual que a embriaguez, a música brega e as histórias de amor poderiam trazer. O resultado é comportado demais, sem enveredar pela impressão do realismo extremo (caso optasse por planos longuíssimos, ou por falas completamente improvisadas), nem pela apropriação do brega, da ressaca, do remorso. Assistir a pessoas falando sobre corações partidos corresponde a uma experiência muito diferente daquela de assistir a esta tristeza representada esteticamente. As carnes expostas na rua, os folhetos nos postes da cidade seriam bons indícios por onde seguir. A bela interpretação de Danny Barbosa, cantando na cena final, constituiria um ponto de partida delicioso: a partir deste nível de encenação, de entrega ao kitsch e ao artifício, o projeto encontraria seus caminhos mais frutíferos.

Filme visto online no 10º Cinefantasy – Festival Internacional de Cinema Fantástico, em setembro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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