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Sinopse

Deusimar é a dona do Inferninho, bar que é um refúgio de sonhos e fantasias. Ela sonha em deixar tudo pra trás e ir embora, para um lugar distante. Jarbas, o marinheiro que acabara de chegar, sonha em ancorar, fincar raízes. O amor que nasce entre os dois vai transformar por completo o cotidiano do bar e a vida dos seus funcionários: Luizianne, a cantora; Coelho, o garçom; e Caixa-Preta, a faxineira.

Crítica

O bar que dá nome a Inferninho é um refúgio de sonho, mas onde a realidade penetra de forma dilacerante e invariável. Nas mesas, permanecem os clientes singulares, personagens que ostentam as suas máscaras (literais) ao invés de escondê-las ou de encara-las enquanto subterfúgios. No longa-metragem de Guto Parente e Pedro Diógenes, esse espaço de exceção comporta a presença dos tipos excêntricos, que, portanto, formam uma paisagem bastante peculiar, embebida num clima de fantasia decadente, porém, constantemente atravessada pelo romance que a enternece. Deusimar (Yuri Yamamoto) é a dona do estabelecimento, figura que parece extraída de algum filme em que orientais colonizados absorvem códigos da cultura norte-americana. Aliás, esses elementos alusivos estão presentes na elaboração do figurino dos convivas. No recinto, bebendo cerveja de litrão e ouvindo baladas melosas que falam de amores mal resolvidos, temos um arremedo de Super Homem, um Mickey Mouse digno da Carreta Furacão, ou seja, decalques notoriamente coxos.

A antropofagia marca Inferninho integralmente, da concepção das pessoas que frequentam o bar às dinâmicas que regem os relacionamentos. Acentuando o exotismo, escancaradamente falsificado ao ponto de soar absolutamente orgânico, surge em cena Jarbas (Démick Lopes), até certo parte do filme chamado apenas por sua função, marinheiro. Ele vem do mar, ou seja, estofado de histórias do mundo, contrastando com aquela gente que faz sempre a mesma coisa, cuja rotina acaba sendo distrair-se na companhia silenciosa de seus pares. Os realizadores investem na construção de uma atmosfera relativamente onírica, em que os absurdos, bem como os pontos fora da curva da normalidade e da normatividade, são totalmente bem-vindos. Deusimar é, ela própria, uma reconstrução de Denílson, a essência feminina de quem nasceu erroneamente no corpo de um homem. Não há uma discussão direta nesse sentido, mas as associações deflagram isso muito bem.

Inferninho ganha outra camada com as investidas do funcionário público que insiste em comprar o local para propiciar a construção de um empreendimento futurista, daqueles que celebram perversamente a chegada do amanhã sobre os escombros do ontem. Guto Parente e Pedro Diógenes tratam esse sujeito abertamente como agente insidioso de um sistema corrupto e pouco preocupado com as histórias impregnadas naquelas paredes de cimento queimado e nas mesas carcomidas pela ferrugem. O Inferninho é um ambiente de resistência, de gente considerada excêntrica, marginalizada pelo modus operandi dos poderes instituídos que intentam demolir a diferença para garantir a manutenção de uma instância excludente. Certas dinâmicas são um tanto trôpegas, como a dos colegas que vêm diretamente do outrora para cobrar do marinheiro a dívida que ameaça a sua felicidade, ou mesmo a cantora ferida que passa a se expressar em outras línguas, mas, ainda assim, é prevalente uma nostalgia agridoce que de tão bem construída faz sombra às inconsistências.

Deusimar é uma personagem ambígua, ao mesmo tempo forte e atingida repetidas vezes por lembretes da fragilidade que tanto se esforça para esconder. O elenco de Inferninho expressa prontamente o tom fabular que os realizadores impõem ao decurso do enredo, encaixando-se nas demandas ordinárias, nem por isso menos importantes, de personagens excepcionais apenas na aparência. O filme é marcado por essa operação antropofágica de absorver determinados códigos e cânones, para depois utiliza-los dentro de uma conjuntura com sabor de novidade. Todavia, não é exatamente pela originalidade que o conjunto se torna bem-sucedido, mas, principalmente, em virtude da criatividade de Guto Parente e Pedro Diógenes ao posicionar a câmera meticulosamente para criar um lirismo consistente, de fontes claras e evidentes, dentre as quais o próprio cinema. Nesse sonho, são possíveis o coelho sensível e os recomeços, desde que isso leve à felicidade de todos.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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