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Sinopse

Após a morte trágica de parte de sua família num acidente de avião, Stephanie trilha um caminho de autodestruição. Todavia, as coisas mudam quando ela descobre que não houve acidente, mas um crime. Stephanie, então, entra no obscuro mundo da espionagem internacional.

Crítica

O Ritmo da Vingança (2020) foi concebido para se tornar um blockbuster de ação e espionagem, e provavelmente iniciar uma nova franquia. O projeto é produzido por Barbara Broccoli, responsável pela saga James Bond, enquanto o elenco traz nomes importantes da indústria: Blake Lively, Jude Law e Sterling K. Brown. A premissa, tão genérica quanto abrangente, sintetiza mais de metade do cinema norte-americano de espionagem: uma pessoa traumatizada pelo assassinato de sua família parte em busca de vingança contra os responsáveis. Com algum treinamento e muita perseverança, abandona a vida de cidadã comum para se tornar uma máquina de mortes a qualquer preço. Busca Implacável (2008 - 2014), A Justiceira (2018) e mesmo a saga Jason Bourne (2002 - 2016) tornam-se referências óbvias à produção, que inclui todas as explosões, tiroteios e perseguições aguardados. Para completar o espetáculo, a perseguição passa por países exóticos e cenários paradisíacos, incluindo Marselha, Madri e Tânger.

No entanto, é surpreendente que o resultado seja tão desorganizado e confuso, dando a impressão de uma obra finalizada às pressas, que talvez tenha passado por múltiplos tratamentos no roteiro e enfrentado conflitos na filmagem e montagem. Para começar, a protagonista soa deslocada na narrativa: depois de perder o pai, mãe e dois irmãos, ela se torna uma prostituta viciada em drogas durante muitos anos, porém o filme jamais demonstra qualquer um destes conflitos. Quando desconfia da possibilidade que o acidente tenha sido fruto de um atentado terrorista, imediatamente abandona a aparência chorosa e sai correndo de casa para encontrar um mentor que a treine na arte do assassinato. Nada nisso soa plausível: a velocidade de seu despertar, a motivação inexistente (ela nunca demonstra saudade dos familiares), a facilidade com que encontra o colega para o treinamento, e especialmente a rapidez em que se converte numa das figuras mais temidas do mundo da espionagem. A diretora Reed Morano inclui uma rápida sequência de treinamento em estilo Rocky, um Lutador (1976), quando a garota aprende a dar alguns golpes e correr rápido. Na cena seguinte, ela parte para atacar os maiores criminosos do mundo.

Blake Lively, que vem demonstrando versatilidade nos últimos anos, fica presa a uma composição tão sofrida que beira a paródia. A versão prostituta da protagonista é tímida demais, já a versão justiceira adquire ares excessivamente truculentos. A atriz ora exagera no sotaque britânico, ora esquece por completo os traços europeus e volta à pronúncia norte-americana. A maquiagem destinada a enfear a sua pele (e que transparece graves problemas de continuidade), além do corte de cabelo bagunçado reforçam a impressão de um filme que tenta soar bruto, durão, avesso ao sentimentalismo. É louvável que a protagonista não seja uma vítima piedosa, no entanto, suas motivações soam estéreis. A maneira como Stephanie encontra pessoas e descobre informações preciosas sobre os terroristas mais procurados do planeta beira a comicidade involuntária. Morano e o roteirista Mark Burnell falham nos aspectos mais importantes de um suspense policial: as relações de causa e consequência, os saltos temporais e as mudanças de espaço. A montagem faz com que mortes e explosões não surtam qualquer efeito nem para a psicologia dos personagens, nem para o andamento da trama. Uma pessoa importante morreu? Paciência, um simples corte da montagem revela o dia seguinte, quando a matadora segue seu caminho.

De modo geral, O Ritmo da Vingança sofre com um problema de tom: o filme se leva a sério demais, numa época em que mesmo as maiores franquias do gênero (John Wick, Missão Impossível) admitem o absurdo de suas reviravoltas e abraçam o humor autorreferencial. Ora, a decisão de aprofundar o realismo da trama causa problemas ao resultado, que reforça o imaginário racista do árabe terrorista – sem qualquer tipo de construção psicológica ou religiosa – e dos norte-americanos salvadores, além de legitimar a vingança e as guerras por motivos pessoais. Nenhum dos heróis age por ideologia, apenas por um trauma pessoal a ser expiado. Além disso, diálogos sofríveis são pronunciados por Lively e Jude Law com a seriedade de quem recita Shakespeare: “Não sei se eu consigo ser quem eu era antes”, lamenta a garota após matar um inimigo. “Até você completar o treinamento, sua menopausa será uma memória distante”, dispara o rígido mentor, em tom de alerta. Como dezenas de produtores, diretores, assistentes e atores deixaram passar frases desse nível?

Por fim, o projeto ainda inclui o romance improvável com um homem perigoso (Sterling K. Brown), a explosão espetacular em cidades distantes, o plano-sequência durante uma perseguição de carros. No entanto, falta criar um motivo para essas cenas existirem, um “antes” e um “depois”, um contexto geográfico. Falta o mínimo de refinamento narrativo, assim como de polimento na conclusão: os efeitos sonoros e intromissões musicais possuem volume tão alto em relação aos diálogos e ruídos que parecem erros de finalização. Talvez devêssemos nos sentir vingados pela ressurreição de Stephanie, mas é difícil torcer por uma figura cujos conflitos são improváveis, as “habilidades especiais” provêm de lugar algum e os relacionamentos com homens soam convenientes demais. Blake Lively recebe o mesmo tratamento dado a Nicole Kidman em O Peso do Passado (2018): corta-se o cabelo de maneira desleixada, maquia-se o rosto com cicatrizes e manchas profundas, coloca-lhe uma arma na mão e está pronta a nova “protagonista forte” que o cinema progressista vem esperando de suas mulheres. Ora, tanto o audiovisual quanto a representatividade feminina merecem muito mais do que esta ode conservadora à justiça com as próprias mãos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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