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Sinopse

Cinco contos de horror. Uma fazenda tomada por horrores há mais de duzentos anos. Cinco encontros com a morte. Um nó que não se desata.

Crítica

Os cinco contos de horror que compõem O Nó do Diabo se debruçam sobre a opressão dos negros pela família Vieira, símbolo ficcional da classe branca dominante. No primeiro deles, em 2018, um típico Leão de Chácara “autorizado” pelo patrão latifundiário tenta garantir a distância dos moradores das comunidades que se avolumam ao largo da fazenda abandonada. É sintomático que o sujeito perambule para cima e para baixo ouvindo um programa radiofônico conservador, que trata os moradores periféricos como cidadãos de segunda categoria. Há uma vontade patente de mostrar o absurdo dessa visão retrógrada que, para começo de conversa, coloca a propriedade acima da dignidade e da vida humana. O segmento possui uma atmosfera de apreensão constante, méritos da maneira como se articulam sons e imagens em prol dessa tensão que desemboca invariavelmente em assassinatos e na reafirmação de uma realidade cujas origens remontam ao período escravagista aludido gradativamente.

A estrutura do roteiro de O Nó do Diabo é inteligente por, em movimento regressivo, permitir que tenhamos uma boa ideia da manutenção histórica da violência contra os negros. No segundo episódio, ambientado em 1987, vemos um casal humilde chegar à residência dos Vieira em busca de trabalho e sobrevivência. Os signos do horror começam a se impor quando o marido descobre nas terras do empregador alguns instrumentos de tortura utilizados outrora para conter a revolta dos escravos, bem como cabeças decapitadas e outros elementos que se reportam ao passado sangrento do local. O longa, assinado pelos diretores Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé, Gabriel Martins, possui um belo desenho de som. No mais das vezes, a trilha sonora é utilizada em função da criação e da manutenção de um clima essencial ao estabelecimento das alegorias como elos entre a História e a fabulação proposta em tela. O fantástico também se faz presente nessa criativa realização de gênero.

O extraordinário se amplia no capítulo de 1921, focado em duas irmãs frequentemente açoitadas pelo capataz dos Vieira. Aliás, o patriarca da família branca é sempre o mesmo, recurso que confere ao personagem uma aura fantasmagórica de permanência ao longo dos tempos, independentemente da época. É uma espécie de agente do status quo, estandarte da supremacia conquistada à base do sangue dos afrodescendentes. A menina que literalmente incendeia superfícies apenas com o toque é um símbolo de resistência, o primeiro deles, sintomaticamente surgido quando o filme, como um todo, retrocede temporalmente. Com isso os realizadores promovem uma constatação importante, a de que as vozes insurretas hoje estão ainda mais abafadas por discursos retrógrados e contrarrevolucionários. Até aqui, O Nó do Diabo mantem-se coeso, a despeito das diferenças de abordagens e tons. Todavia, as duas últimas partes, infelizmente, enfraquecem a trajetória marcada pela contundência.

A fuga de um homem que acabara de perder a mulher e o recém-nascido à brutalidade dos Vieira, transcorrida em 1871 – não à toa, ano em que os filhos de pais escravos foram “alforriados” –, é destituída da criatividade e pungência vistas até então, embora se esforce visivelmente para adicionar novas camadas ao longa-metragem, exatamente porque próxima do momento capital da promulgação da Lei Áurea. O fragmento derradeiro, em 1818, que mostra quilombolas escapando rumo às terras dos Vieira e requisitando, de certa maneira, seu direito a usufruí-la em pé de igualdade, é o mais fraco de todos, pois vitimado por uma encenação bem aquém dos demais. O Nó do Diabo é desequilibrado, problema comum aos filmes episódicos. Há de se exaltar, porém, a coesão da proposta de deflagrar o sofrimento do negro no Brasil, valendo-se do horror e do extraordinário para falar dessa subjugação étnica.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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