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Sinopse
O Deserto de Akin conta a história de Akin, um dedicado médico cubano em exercício no Brasil, pelo programa Mais Médicos, em meados de 2018. Entre sua rotina de trabalho na comunidade indígena e seus momentos de intimidade com Érica e Sérgio, sua relação com o Brasil se aprofunda e fortalece. Com o resultado presidencial de Jair Bolsonaro e o fim abrupto da cooperação entre os dois países, ele se vê impelido a tomar uma decisão: voltar a Cuba e abandonar as relações que vinha construindo ou permanecer e se reinventar mesmo sem poder medicar. Premiado no Festival do Rio 2024.
Crítica
Exibido em competição na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso, O Deserto de Akin nos permite pensar um pouco sobre a representação do discurso político no cinema. Isso porque ele tem como protagonista um médico cubano integrante do programa Mais Médicos – que possibilitou a milhares de brasileiros terem atendimento de saúde em regiões antes desassistidas. Portanto, o contexto é o de acontecimentos históricos recentes, antes de o ex-presidente Jair Bolsonaro ser eleito e descontinuar o convênio com os doutores caribenhos. O motivo? Uma atitude irresponsável e puramente ideológica que deixou muita gente novamente desamparada. O personagem principal do filme de Bernard Lessa é, desse modo, alguém no olho de um furacão político que assolou o Brasil há pouco – na esteira de outras nações onde igualmente cresceram os movimentos de extrema direita. Akin (Reinier Morales) está instalado numa localidade vizinha a dunas de areia, na qual há uma comunidade indígena. O primeiro atendimento que vemos é à menina integrante dos povos originários que tem um grave problema oftalmológico. Atencioso, ele diagnostica a garota como candidata a um transplante de córnea. É preciso fazer o povo enxergar novamente antes que seja tarde. Essa é a noção implícita no gesto carinhoso de perceber o problema. Uma metáfora talvez óbvia demais num filme que tem certa ingenuidade.
O Deserto de Akin tenta transmutar afeto em resistência, para isso mostrando Akin não apenas como alguém absolutamente destoante do bolsonarismo crescente, mas também um homem sensível, responsável e aberto. Envolvido como a filha de uma paciente idosa, ele cede aos encantos do jovem cozinheiro com quem flerta. Ponto positivo pela representação bissexual, mas esse bailado amoroso tem um quê de artificial. Isso porque ações dos personagens principais estão esquematicamente subordinadas à conduta esperada de um progressista na atualidade, quase como se integrassem uma cartilha de como deveria se comportar alguém que não votaria em Jair Bolsonaro. E isso não é construído organicamente, não parece surgir espontaneamente do que as pessoas são de fato. Mas, é função do crítico tentar compreender os motivos dessa falta de naturalidade, os porquês envolvidos numa sensação de engessamento amoroso e político que abraça os personagens durante a trama toda. E os motivos têm um pouco a ver com a direção de Bernard Lessa, especialmente com o esvaziamento de emoção e vida dos planos. Quando há um diálogo, parece que o mundo em torno simplesmente parou, mas não com intenções narrativas simbólicas. Falta “quentura” aos quadros que o diretor propõe para subordinar o afeto ao objetivo político – nobre, claro, mas que aqui é somente uma boa intenção.
Akin é um homem obstinado que trata os pacientes com a humanidade esperada de alguém que jurou zelar pela vida, doa a quem doer. Porém, ele quase não encara dilemas e simplesmente não exibe qualquer incoerência. Trata-se de um herói romântico, ilibado, cujas ações nunca causam tensão no ambiente ou mesmo com os seus interlocutores. Bernard Lessa cria pequenos conflitos que nunca chegam a ser verdadeiramente ameaçadores, como o da mãe da menina indígena que inicialmente é contrária ao transplante porque não seria correto “usar o olho de outra pessoa”. Essa dúvida nunca vira um empecilho, pois simplesmente deixa de ser trabalhada até a mulher voltar à cena anunciando que pensou melhor e resolveu dar sinal verde para o procedimento. Qual a serventia dramática do problema? Da mesma maneira, um possível descontentamento da ficante interpretada por Ana Flávia Cavalcanti nem sequer é sugerido quando Akin se relaciona com o cozinheiro vivido por Guga Patriota – aliás, não fica muito claro se ela ficou sabendo do envolvimento dos dois. Há muitas pontas soltas nesse filme que persegue como ideal um contradiscurso e confunde introspeção com apatia. De um lado, há os ventos da extrema direita que ameaçam desertificar a “casa” das pessoas (outra metáfora óbvia demais). Do outro, esses personagens formatados de acordo com um manual progressista duro.
Para um filme com evidentes intenções políticas – e muito bem-vindas, por sinal –, O Deserto de Akin foge demais dos confrontos. O máximo que o diretor nos apresenta é uma breve discussão com um senhor reacionário que hostiliza adversários políticos. Bernard localiza o protagonista num mundo prestes a ruir, a julgar pelas consequências diretas à sua atuação com a trágica eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. Mas, ele não transforma essa sensação em atmosfera opressora, não trabalha cinematograficamente para embarcamos com Akin numa situação tétrica entrecortada por pequenas felicidades obtidas em encontros amorosos. Além do mais, a estrutura do roteiro assinado pelo diretor é feita de breves esquetes engessados que não se interligam de maneira orgânica. Some isso à falta de vivacidade dos quadros antes mencionada e temos um filme que tenta engrenar, mas nunca consegue efetivamente dar a partida. Não ajuda muito os figurantes terem pouco traquejo na hora de interagir com os personagens principais, do que decorre um aumento significativo da sensação de artificialidade. As dores e amores de Akin são, assim, parte de um discurso contrário à ascensão de um candidato extremista ao poder O que é louvável. Porém, esse discurso tem somente uma nota desafinada reverberando sempre a mesma coisa: é isso que vamos perder se Bolsonaro ganhar.
Filme visto na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso em novembro de 2024.
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