Crítica


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Sinopse

Uma jovem se lembra da última visita feita ao pai encarcerado. Em meio às fotos que o sujeito tirou da cidade quando em liberdade, ela comenta a lenda do Ciclope, criatura que nasce sabendo o dia em que vai morrer.

Crítica

A primeira parte de O Ciclope apresenta uma filha narrando (sempre fora de quadro) o derradeiro encontro com seu pai encarcerado. A menção à pandemia do coronavírus insere o curta-metragem no tempo atual, mas essa noção cronológica não tem muita serventia/função. O tom das palavras é saudoso, algo acentuado pela exposição de fotografias tiradas pelo apenado quando este ainda gozava de plena liberdade. Não é citada a causa da condenação, pois o intuito dos cineastas Guilherme Cenzi e Pedro Achilles parece ser elaborar como matérias-primas tanto a memória como a saudade. No entanto, eles perdem uma boa oportunidade de revelar melhor/mais o personagem então apenas referenciado, justamente ao passar muito brevemente pela apresentação de seu olhar. As imagens granuladas revelam um sujeito atento aos detalhes, do tipo de observador que desloca sua lente exatamente às minúcias potencialmente soterradas pela quantidade de signos emergentes numa cidade movimentada. Infelizmente, os realizadores não investem tanto nisso.

Já na segunda parte do curta, temos uma espécie de ensaio fantástico minimalista. Um homem simplesmente aparece numa localidade erma. Por associação, podemos imaginar que se trata exatamente do pai da narradora (do espírito dele?), cujo desejo principal era visitar a terra natal antes de morrer. Guilherme Cenzi e Pedro Achilles colocam o sujeito para deambular pelo cenário, fotografando-o num belíssimo preto e branco (função a cargo de Paula Toni) na conexão breve com as paisagens. Há uma melancolia persistente, a sensação de proximidade do fim, mas, ao mesmo tempo, também podemos perceber desprendendo-se dessa movimentação uma ligeira noção de reconexão livre e poética. Agora sem palavras excessivamente indutivas, cabe à imagem, aos gestos e à disposição espacial a função de criar uma ponte com a dinâmica aparentemente documental do início. A intenção é ótima, a execução esmerada, mas o impacto desse diálogo é pontual. De positivo, a vontade de não fazer algo meramente ilustrativo e/ou explicativo que elucide e/ou determine.

O Ciclope utiliza como argamassa entre os segmentos a lenda do ciclope. O gigante de um olho é uma figura trágica por saber o dia da própria morte. A câmera fotográfica do pai, simbolicamente, assim se configuraria num olho a registrar o lirismo camuflado no estrépito da cidade. Essa noção alegórica poderia ser melhor trabalhada. Indo além, a lógica estabelecida pela construção da metáfora também pode encontrar reverberação no conceito câmera-olho, introduzido pelo cineasta Dziga Vertov nas décadas inaugurais do século 20 para designar um tipo de registro interessado na captura da verdade pelo dispositivo cinematográfico. No entanto, tal conjectura sequer possui pilares no filme, apenas aqui servindo como veículo de livre concatenação de lógicas baseadas em conceitos entrecruzáveis. A abertura do filme ao sensorial nos permite, inclusive, lê-lo sem tantas amarras objetivas. O conjunto é poroso e nos instiga ao escancare da janela às referências e afins.

De concreto, temos dois universos diferentes, um de imagens fixas justapostas com a intenção de aludir a um vínculo emocional acentuado pela narração; o outro feito de uma caminhada sem aparente destino. Guilherme Cenzi e Pedro Achilles capricham nos aspectos estéticos (menos no interlúdio que apresenta o texto e o desenho do ciclope, artifício de gosto duvidoso), investem num percurso menos fundamentalmente narrativo. A intenção de promover uma ponte expressiva entre as frações um e dois é parcialmente bem-sucedida. Os realizadores conseguem criar um elo afetivo/efetivo entre as partes, mas não fazem isso ao ponto de que uma seja estritamente inerente à outra. Talvez essa independência seja a finalidade. Na verdade, a segunda é subalterna da primeira somente quanto à produção de sentido sobre o homem virtualmente libertado para vivenciar o desejo e a filha que carrega sua história e trata de preservá-la. O resultado é um filme bipartido.

Filme assistido online no 14º Cine Esquema Novo, em abril de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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