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Sinopse
Em O Brutalista, o arquiteto judeu nascido na Hungria László Tóth migra para os Estados Unidos em 1947. Inicialmente forçado a lidar com a pobreza, ele logo ganha um contrato que mudará a sua trajetória pelos próximos 30 anos. Indicado ao Oscar 2025.
Crítica
O Brutalista parece um monumento cinematográfico de outro tempo – filmado em VistaVision, formato de alta resolução criado na década de 1950. Trata-se de um empreendimento faraônico sobre a jornada errática de um imigrante húngaro obrigado a escapar de sua terra natal em virtude da Segunda Guerra Mundial. Enquanto ouvimos em off a leitura da carta da sua esposa obrigada a permanecer na Hungria, o arquiteto László Tóth (Adrien Brody) enxerga a Estátua da Liberdade, um dos principais ícones dos Estados Unidos. O fato de ela ser fotografada, primeiro, de cabeça para baixo, e, segundo, de modo oblíquo é para criar uma imagem simbólica inaugural sobre a falsidade do conceito de “terra das oportunidades” associado aos EUA. László é esse homem solitário, o estrangeiro judeu tentando uma segunda oportunidade no lugar que deve ser diferente do seu continente ainda tão machucado pela guerra. O cineasta Brady Corbet poderia pegar vários caminhos a partir dessa premissa. Poderia fazer uma ode à individualidade, assim como tinha ferramentas para construir uma epopeia indicativa dos problemas enfrentados por forasteiros numa sociedade que tem por princípio fingir virtude para esconder a hipocrisia. Corbet é audacioso, pois tenta cobrir todas essas possibilidades, às vezes passando muito perto da grandeza (especialmente na primeira parte), em outras patinando no terreno da estranheza. De todo modo, é melhor errar tentando algo grande do que se conformar com a mediocridade.
Há um filme da Hollywood da Era de Ouro que pode ser colocado ao lado de O Brutalista, não em termos de ambição, mas pela maneira como também utiliza a obsessão de um arquiteto para tirar o curativo que esconde as feridas sociais e individuais de um meio social. Essa obra-prima é Vontade Indômita (1949), de King Vidor, melodrama genial estrelado por Gary Cooper com algumas imagens de edificações que provavelmente serviram de inspiração à fotografia rigorosa de Lol Crawley neste longa-metragem indicado em significativas 10 categorias no Oscar 2025. Brady Corbet começa a trama dando muita ênfase à construção da atmosfera, vide a importância das imagens encarregadas de sugerir certa transcendência e da trilha sonora marcante assinada por Daniel Blumberg, que funciona como acento para essa aspiração à grandiosidade. Quanto ao protagonista, László é um sujeito complexo que não se deixa definir somente pela dor das lembranças da guerra ou mesmo pela distância da esposa impedida momentaneamente de sair da Europa. E a espessura dramática dessa figura trágica feita em frangalhos é apenas possível pelo trabalho excepcional de Adrien Brody. László é vítima de algo maior, mas não faz desse sofrimento uma âncora ou mesmo um porto-seguro. A ajuda das drogas prenuncia a tragédia, mas ao longo da história vamos perceber que essa é uma das várias pistas falsas plantadas para brincar com nossas expectativas. De todo modo, László encontra um benfeitor. Homem de sorte.
O Brutalista fala de um sistema de autoproteção tão enraizado que é capaz de cooptar até suas vítimas. Estamos falando da indisposição norte-americana com qualquer elemento não branco, não anglo-saxão, não protestante, ou seja, com os traços destoantes da elite dominante. László é expulso do lar temporário sob desconfianças descabidas cuja motivação real é a perversidade da católica e do ex-judeu – que abraça a opressão para nunca mais ser oprimido? Depois de fazer a reforma moderna na biblioteca de um ricaço, László vira bode expiatório, ficando com o ônus da desaprovação e, novamente, sendo jogado aos leões. Salvo anos depois por esse milionário, Harrison Lee (Guy Pearce), László é encarregado de uma obra faraônica, daquelas que costumam consumir seus criadores à medida que a realidade se coloca entre eles e o ideal. Brady Corbet desenha aos poucos esses painéis individuais e coletivos, não apressando o fornecimento de informações para criamos opiniões definitivas a respeito dos personagens. Mesmo László sendo um homem genial, que a sua arte brutalista seja um sopro de modernidade ameaçadora às bases tradicionais da nação feita de imigrantes (mas que os regurgita sob os mais descabidos pretextos), ele é mordido por sanguessugas. O capitalista “bonzinho” que celebra as “conversas intelectualmente estimulantes” como o estrangeiro admirável nada mais é do que um vampiro, um predador que suga sua presa até ela se exaurir, depois a descartando como se fosse entulho.
László é uma vítima, mas não quer aceitar isso. Disposto a sacrificar parte do próprio pagamento para ver a obra-prima terminada, ele é gradativamente tragado ao redemoinho podre de uma coletividade supremacista e classicista. Ao inserir a esposa do protagonista (vivida por Felicity Jones, que destoa com a sua interpretação um tanto monocórdica) na segunda metade do filme, Brady Corbet revigora as possibilidades do melodrama. Assim, ele embola de modo paradoxal a percepção sobre certos e errados. Vemos a esperada felicidade do reencontro que não é seguida do contentamento duradouro; os lobos colocando finalmente as garras para fora e largando as peles de cordeiro; as várias tensões entre o casal que aparentemente está incorrigivelmente separado pela guerra; o monumento à genialidade (do arquiteto) e à extravagância (do mecenas) que nunca fica pronto. O Brutalista é uma obra repleta de imagens imponentes e de instantes muito bem elaborados nos quais as dores do protagonista refletem as rachaduras sociais e vice-versa. Não de maneira óbvia, sempre em busca de algo que faça dos obstáculos a materialização de problemas profundamente enraizados. Como na cena da violação, cujo significado extrapola o homem bêbado cometendo um crime, pois ali ele exerce “seu direito outorgado pelo dinheiro” de subjugar os fracos. Que bom ver um cineasta relativamente jovem navegando em águas tão obscuras, acertando em muitas coisas e errando em outras, mas ousando e correndo os riscos.
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