Crítica
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Sinopse
Depois de errar o alvo e cometer um erro impensável, um assassino frio e calculista começa uma caçada internacional para aniquilar seus contratantes e os mandantes destes, antes que ele próprio seja aniquilado.
Crítica
Assim como o veterano Martin Scorsese aborda frequentemente o gangsterismo em seus filmes, David Fincher utiliza com regularidade as narrativas criminais nos seus. Trata-se da constante temática que melhor representa os interesses (e a expertise) desse realizador norte-americano notabilizado por sucessos como Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), Clube da Luta (1999), Zodíaco (2007) e Garota Exemplar (2014). São histórias com tratamentos diversos, mas que têm em comum personagens desviantes das regras sociais (de civilidade e convivência) se valendo do crime como um modo de expressão. Se, por um lado, há esse assunto geral em comum, por outro, os enfoques são bem distintos, inclusive tendo em vista a variedade do material humano. Fincher já retratou delitos passionais, transgressões pessoais/coletivas de cunho mais filosófico-existencialista, perseguidores obcecados por encontrar a verdade teimosa em se esconder e ainda as mentes perturbadas. Em O Assassino, ele parte de uma sobriedade que contrapõe a saturação dos filmes criminais mais recentes. À procura de uma comparação (ou mesmo de uma associação) que ajude a compreender esse contraste que o cineasta propõe frente às tendências atuais desse filão, podemos dizer que seu novo filme é uma espécie de anti-John Wick. Enquanto as histórias (ótimas, por sinal) protagonizadas por Keanu Reeves optam por esticar a violência ao limite, desenhando espirais cheias de exageros, aqui sobressai o rigor de um sujeito invisível.
O protagonista vivido por Michael Fassbender é um homem de mil nomes, alguém que troca de identidade conforme as demandas das ocasiões. Portanto, trata-se de um personagem cuja individualidade se molda às circunstâncias, uma vez que ele assume facetas de acordo com as necessidades das missões. Por exemplo, ao se aproximar da vítima em Paris, ele nos revela por meio de um monólogo confessional interior que assume a persona de turista alemão na capital francesa porque acredita que todos ali fogem de turistas alemães. Esse homicida autoindulgente é um camaleão diluído (até não ter personalidade própria?) pelos nomes que constam nos não menos numerosos passaportes utilizados para transitar pelo mundo. Até nisso ele é uma antítese de John Wick, uma vez que o anti-herói interpretado por Reeves é aquele cuja fama assombrosa o precede. Já o Assassino de Fassbender é alguém que não deseja ser reconhecido, um pontinho disperso na multidão, a quem a fama condizente com a sua letalidade representaria apenas o fardo de ser notado e certamente se tornar alvo fácil. O Assassino é um belo thriller de observação em determinados momentos, sobretudo pela negação quase completa da ação como complemento automático de um bom suspense. Há somente uma cena de fuga, sem tanta ênfase na tensão de uma possível captura. E também existe uma sequência de batalha corporal, fotografada numa penumbra que evita a espetacularização daquele combate de fim previsível.
Mesmo negando conscientemente a ação como suplemento do suspense, O Assassino não é um filme isento de movimentação e energia. O Assassino está sempre em trânsito, principalmente depois de errar de modo grosseiro o alvo na missão inicial e com isso se tornar vítima dos contratantes que precisam, num só movimento, dar satisfações aos mandantes e eliminar o arquivo vivo. No entanto, a narrativa não realça as maquinações perversas ou ainda a urgência imposta desde que o protagonista se torna alvo cobiçado. O longa-metragem permanece fiel à construção minuciosa de uma fuga detalhista/preciosista que logo se transforma num itinerário ponderado/obsessivo de vingança. Assim como John Wick, o Assassino também é em parte motivado pelo desejo de matar os que atacaram a sua esposa. Mas, enquanto o personagem de Keanu Reeves é um sujeito mitificado, cuja frieza contrapesa de modo estiloso a sua habilidade exuberante, o de Michael Fassbender fica entre o desejo de derrotar opositores, sejam eles quem forem, e o gélido protocolo do cumprimento do dever – se espera dele que vá à desforra, que mate para não ser morto. Os gestos do homem são meticulosos, os monólogos interiores confessionais são repetidos como mantras (o que sugere a personalidade disciplinada), mas não há rompantes emocionais. Ele representa um mundo de afetos já desgastados, no qual cumprir deveres é o essencial. O Assassino poderia ser qualquer profissional dedicado, mas é criminoso.
Outro elemento que distancia o Assassino de John Wick – numa comparação contínua aqui por conta das suas possibilidades expressivas –, é que o personagem de Michael Fassbender nega completamente a sua excepcionalidade, enquanto o de Keanu Reeves aceita a condição de ser um homem acima da média numa área repleta de profissionais espetaculares. Essa consciência de sua limitação (ou seria falsa modéstia?) é importante para percebermos um pouco mais da essência desse sujeito, das camadas obscurecidas por sua atividade cotidiana. Na cena em que o Assassino dialoga com uma de suas vítimas (vivida por Tilda Swinton), há uma pista sobre motivações provenientes do inconsciente. A fábula sacana (e divertida) do caçador que erra os tiros propositalmente diante do urso que, por sua vez, sodomiza o seu agressor como retaliação sugere: talvez o protagonista seja quase incapaz de cometer um engano e, ainda quem sabe, o escorregão que determina a nova sina seja uma autopunição ou uma estratégia instintiva para sair da letargia determinada pela perfeição. David Fincher poderia investir melhor nesse seu diagnóstico, trabalhando com mais afinco as insinuações que propõe as questões valiosas sobre o assassino. Mas, mesmo que quase deixe essas ideias um tanto soltas, ele ainda assim consegue fazer um filme capaz de questionar trâmites do thriller a partir de um personagem inquietante.
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