Crítica


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Sinopse

Leonard trabalha como alfaiate para os maiores gângsters de Chicago nos anos 1950. Ele permite que sua loja seja utilizada como ponto de troca de informação entre homens perigosos, no sigilo total. Durante uma noite, no entanto, descobre que um sangrento acerto de contas está prestes a acontecer em sua alfaiataria. Agora, os conhecimentos acumulados durante o tempo podem ser úteis.

Crítica

É preciso ter coragem para criar um filme de máfia situado inteiramente dentro de uma alfaiataria. Em The Outfit (2021), Graham Moore imagina a cidade de Chicago nos anos 1950, quando o crime organizado tomava conta das ruas. No entanto, prefere trazer os criminosos, com suas armas e ameaças, para o interior do comércio onde trabalha Leonard (Mark Rylance), conhecido como O Inglês pelos clientes. A premissa justifica a curiosa disposição dos espaços: enquanto o protagonista confecciona ternos e paletós, permite que o local sirva de zona neutra de comunicação entre criminosos. Estes entram sem avisar e percorrem os cômodos, como se fossem proprietários do local. Num canto, o homem idoso corta e costura sozinho, sem pronunciar uma palavra sequer. A estrutura será cíclica: a primeira cena se inicia com a porta deste local sendo aberta e ocupada, e terminará com uma porta fechada. O que acontece ali dentro ilustra um microcosmo da violência desenfreada lá fora. O cineasta compra, portanto, o desafio de oferecer uma obra dinâmica, combinando suspense, drama e comédia, com diversos personagens, num cenário único. Tal disposição pode se assemelhar ao cenário teatral, porém o filme efetua uso potente de enquadramentos, profundidade de campo e montagem para transformar os três míseros cômodos (recepção, sala de costura, depósito) num palco de aventuras.

A direção se sai bem com a representação pela ausência, graças a alguns fatores específicos. Primeiro, o desnível de informações típico do suspense: cada indivíduo neste comércio possui informações ignoradas pelos demais, e somente o espectador está ciente de tudo o que ocorre — ou, pelo menos, assim acredita durante a metade inicial da narrativa. Segundo, pelo trabalho de sons em off: transitando da frente à parte dos fundos, o alfaiate escuta por acaso revelações comprometedoras. Nunca presenciamos o rosto daqueles que fazem ligações telefônicas, ou desferem ameaças a terceiros: estes estímulos são sobrepostos aos rostos de figuras outros, a exemplo de Leonard e a recepcionista Mable (Zoey Deutch). Melhor do que descobrirmos planos de assassinatos e traições por seus idealizadores, percebemo-nos pela reação de sujeitos não envolvidos na tramoia. Terceiro, por um cuidado formidável de luz e sombra, barulho e silêncio: ao lado de cada mesa bem iluminada, há zonas escurecidas que a direção saberá aproveitar; após o ruído de um tiro, ou uma nova chantagem, a ausência de palavras permite que o espectador reflita a respeito do ocorrido e formule hipóteses por conta própria. O roteiro toma o tempo necessário para se explicar ao público: em estilo análogo àquele do protagonista, ele elabora suas confecções com precisão. Conforme atesta o diálogo de abertura, o planejamento será fundamental à qualidade do resultado (algo que serve à alfaiataria, ao cinema e aos planos misteriosos da trama).

Enquanto isso, as reviravoltas se convertem no tema principal da aventura. Esqueça os projetos nos quais o espectador é levado a acreditar numa versão apenas para, na reta final, descobrir que estava errado o tempo inteiro (estilo M. Night Shyamalan, por exemplo). Neste suspense, há transformações surpreendentes dispersas ao longo da jornada, constituindo golpes entre os personagens, ao invés de uma provocação com o público. Quando somos pegos de surpresa por uma mudança abrupta, alguém em cena manifesta reação semelhante — ou seja, o artifício não se torna uma finalidade em si própria, visando somente trapacear o espectador. Por isso, as guinadas parecem orgânicas, ainda que gradativamente absurdas. O projeto se encerra pouco antes de se converter num delírio completo, rompendo com a psicologia básica de seus heróis e adversários. Moore estica a corda narrativa até o limite da verossimilhança, como se testasse nossa adesão: você ainda ficaria ao lado de tal indivíduo, sabendo que cometeu um crime bárbaro no passado? Continua torcendo pela figura gentil ao descobrir suas intenções reais? Não há inocentes, no final: nem aqueles que trabalham na loja, nem seus frequentadores assíduos, e muito menos o espectador. Esta maquinaria se assemelha a um jogo de xadrez, no qual os protagonistas partem com possibilidades idênticas de vitória, dependendo dos próximos passos, e da capacidade de antecipar os golpes do oponente.

Além disso, há um aspecto político interessante em The Outfit. A razão pela qual gângsteres se autorizam a efetuar transações secretas ao lado de Leonard e Mable reside no fato que ninguém esperaria que um homem de certa idade, hábil na fabricação de roupas, e uma garota jovem pudessem ser perigosos. O fato de serem subestimados pelos “homens de poder” faz deles invisíveis — algo que, no contexto de guerra invisível da máfia, torna-se uma vantagem para ambos. Logicamente, ninguém saca seus guarda-chuvas mortais, nem revela habilidades primorosas para a luta — este não é Kingsman: Serviço Secreto (2014). A arma dos indivíduos considerados frágeis será a conversa, a capacidade de manipulação e retórica. Mark Rylance, de boca entreaberta e os pequenos olhos espantados, sublinha o imaginário de docilidade propício ao herói, enquanto Zoey Deutch brinca de subverter o estereótipo da garota ingênua, sonhando em se mudar para Paris. O cantor e ator britânico Johnny Flynn se adapta surpreendentemente bem à figura do mafioso norte-americano, capaz de tanta gentileza quanto brutalidade. Apenas Simon Russell Beale, no papel do Sr. Boyle, se mostra incapaz de transmitir a gravidade esperada do líder do tráfico na região. De qualquer modo, os atores se divertem com estes personagens que interpretam outros personagens, revelando cena após cena os interesses escondidos desde o princípio. Trata-se de teatro, afinal, não no sentido de linguagem e estrutura cênica, e sim de um teatro de máscaras, de falsas aparências e trucagens ocorrendo diante de nossos olhos.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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