Crítica


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Sinopse

A chegada dos brancos impactou severamente a vida dos povos indígenas. Rios secaram ou foram envenenados, animais fugiram ou foram extintos e as árvores começaram a cair. Todavia, os cânticos e as tradições permanecem.

Crítica

“Essa terra é nossa, não é dos brancos”! A frase é repetida pelo menos uma dezena de vezes ao longo do documentário. Do título aos diálogos, o grito de guerra se reproduz, como se buscasse entrar na cabeça do homem branco por insistência. Para quem ainda tem dúvidas sobre o direito dos povos indígenas aos espaços apropriados por fazendeiros, com a conivência do Estado, eles relembram sua trajetória no país. Quantas vezes você já ouviu a história do “descobrimento” do Brasil narrada pelos índios? Desta vez, são os Tikmũ’ũn que descrevem a invasão dos colonizadores, a destruição das árvores, dos rios e o extermínio de aldeias completas. Segundo um personagem, “os brancos são como formigas”, porque se multiplicam em velocidade espantosa e destroem as plantações. Dirigido ao espectador não-indígena, o filme apresenta um tom de impaciência e irritação. Os personagens denunciam as placas removidas de territórios demarcados, as decisões governamentais tomadas sem a participação deles, os símbolos e letreiros escritos com erros. O tom das falas carrega a indignação de um povo que protesta há centenas de anos, mas ainda não tem sua voz escutada.

Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (2020) apresentas cenas muito fortes no que diz respeito ao posicionamento dos índios. Os diretores Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero entrevistam membros da comunidade dentro de uma sala de aula. Enquanto eles narram os assassinatos de seus familiares, nomes de indivíduos Tikmũ’ũn mortos por brancos são gravados na lousa ao fundo por colegas. As duas camadas se reforçam, além de provocarem um choque interessante entre a potência do som (o testemunho oral) e da imagem (a lousa “em transformação”, sendo completada ao fundo). As tensões com os fazendeiros da região respingam no plano de fundo, porém de modo certeiro: o dono de um estabelecimento provavelmente confunde a equipe de cinema com uma telerreportagem e passa a reclamar do suposto roubo de uma lâmpada em seu estabelecimento por parte dos índios. “O que é uma lâmpada perto de tantas vidas que vocês já tiraram?”, contestam os protagonistas. Em seguida, o capataz de um fazendeiro interrompe as filmagens, preocupado com a presença de desconhecidos no terreno do chefe. “Ele nem é o dono dessas terras”, ironiza um índio. Os confrontos ocorrem de maneira velada, enquanto a montagem eleva o nível de tensão.

Curiosamente, os cineastas abrem mão de imagens de arquivo para ilustrarem os assassinatos. A caminhada de um grupo ocorre apenas no tempo presente, enquanto apontam para todas as direções e descrevem cada destruição ou crime perpetuado pelo homem branco. O filme aposta na estética da urgência, trabalhando com poucos recursos, luz natural, câmera na mão. A luz chega a estourar em alguns momentos, o movimento da câmera soa menos fluido em determinadas passagens, porém os autores insistem na importância do acúmulo de casos. As denúncias se sobrepõem ao limite da abstração. Neste sentido, tornam-se repetitivas: da primeira à última cena, o documentário denuncia a opressão e constata as mortes. O dispositivo resulta tão cristalino quanto pouco aprofundado: de que maneira a história dos Tikmũ’ũn se articula com aquela de outras aldeias? Qual parcela de suas terras foi preservada? Eles obtiveram alguma vitória na justiça; estão representados politicamente de alguma forma? Quantas pessoas restam, qual é a parcela de jovens, e quais são as condições de vida daqueles que permanecem nas terras limitadas?

Em seu filme anterior, Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito (2020), Isael Maxacali e Sueli Maxacali registravam o dia a dia da comunidade, suas tradições e crenças. Tratava-se de uma iniciativa próxima do cinema antropológico clássico. Desta vez, a tomada de posição é mais direta, produzindo um projeto de aparência mais ágil, e também menos polida. Ao menos, preocupam-se em assumir a presença de pessoas brancas em coautoria, revelando cinegrafistas e operadores de boom dentro do quadro. Deste modo, as frases de indignação são disparadas sobretudo à equipe parceira, em tom retórico: reclama-se do abuso dos brancos àqueles brancos que concordam com as ideias dos índios. O alcance político desta abordagem se limita, visto que não leva o grito de maneira organizada para fora da esfera da aldeia. O retrato cotidiano de Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito constituía uma esfera íntima, que exigia de fato a permanência junto a essas pessoas, dentro das casas, durante as tarefas diárias. Já o discurso a respeito de reparação história, justiça contra séculos de opressão e apropriação indevida de terras necessita de fricções com o poder institucional: não se faz política sozinho.

Os personagens esclarecem suas intenções num desabafo: “A gente veio aqui para você fazer um documento para o governo ver e devolver as nossas terras”. Há expectativas claras quanto às consequências práticas do filme. A obra pode se inserir numa demanda mais ampla, envolvendo advogados, ONGs e militantes, porém em si própria, tem poder quase nulo de provocar a retomada das terras. O cinema utilitarista, que aposta suas fichas na verbalização de uma história que “precisa ser ouvida”, esbarra na ontologia do processo artístico, cuja vocação se presta mais ao debate via representação do que à transmissão direta do real. Deixemos ao jornalismo a utopia da objetividade. Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! possui a virtude da clareza, da História revisitada pelos índios enquanto protagonistas. Numa cinematografia brasileira dotada de raríssimos cineastas indígenas, o resultado constitui um ato de resistência por si próprio, em especial face à política de desmonte do governo Bolsonaro. No entanto, o conteúdo do grito precisaria, em primeiro lugar, encontrar uma estética do grito, e em segundo lugar, saber a quem dirigir sua voz, com qual objetivo. Na política como na arte, o pathos é tão importante quanto a estratégia de comunicação.

Filme visto online na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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