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Sinopse

As yãmĩyhex (mulheres-espírito) se preparam para partir após passarem um tempo na Aldeia Verde. Há os preparativos da grande festa de despedida. Elas se vão, mas sempre voltam com saudades de pais e mães.

Crítica

Quantos filmes dirigidos por cineastas indígenas você já viu? Por mais que o cinema brasileiro esteja repleto de ótimas produções sobre comunidades indígenas, dirigidas por Andrea Tonacci, Vincent Carelli e Luiz Bolognesi em particular, cabe ressaltar a importância e a excepcionalidade de ter diretores indígenas retratando a si mesmos no cinema. Em Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito (2020), a dupla formada por Sueli Maxacali e Isael Maxacali retrata uma vivência muito específica na Aldeia Verde Maxacali, em Minas Gerais. Eles poderiam se concentrar no dia a dia dos familiares, representando os gestos e comidas típicos enquanto forma de registro e legitimação aos olhares estrangeiros – sobretudo num Brasil contemporâneo, que ataca os povos indígenas com brutalidade. No entanto, os cineastas preferem revelar aos olhos dos brancos uma série de rituais muito específicos, quando as anciãs do povoado decidem que é hora de partir.

Apesar de existir uma preocupação com a compreensão estrangeira, os diretores jamais transformam o documentário numa exposição antropológica. Muitos elementos são deixados à compreensão do espectador, seja pela crença no poder de dedução das ações retratadas, seja pela primazia do estético sobre o narrativo (vide as cenas belíssimas das mulheres-espírito cobertas de cinzas). Algumas passagens importantes também possuem seu significado direto ocultado em nome do respeito às autoridades indígenas: algumas falas não são traduzidas quando os líderes locais não o permitem. Nestes momentos, testemunhamos uma comunidade comunicando-se através de cantos alheios à nossa língua, em gestos que nem sempre compreendemos. A diferença de culturas, ou ainda a riqueza das mesmas, é explicitada por este gesto de explicitação da alteridade – ao invés de mostrar que são “como nós”, como diria o atual governo, para buscar a empatia pela identificação, a dupla Maxacali compartilha suas especificidades sem abrir concessões à compreensão.

Seria tentador, e quase inevitável, medir os méritos cinematográficos de Yãmiyhex: As Mulheres-Espírito por nossa régua branca, urbana, clássico-narrativa. Fugindo ao máximo possível desta armadilha, cabe ressaltar ao menos a sensação de surpresa diante de uma narrativa que poderia ser considerada hermética ao público médio. O filme registra os rituais das mulheres-espírito, dia após dia, atravessando manhãs, tardes, noites e manhãs seguintes sem interrupção. Testemunhamos danças entre pessoas com os rostos cobertos por tecidos, utilizando os vestidos confeccionados especificamente para o evento, e depois cobertas de água, de lama, de cinzas. Eles dançam juntos, se provocam, se batem, lançam cadeiras e pedras uns nos outros. Os gêneros são rigidamente separados – há funções masculinas e femininas – ainda que ambos utilizem os mesmos vestidos em ocasiões distintas. As descrições dos diretores-narradores podem soar insuficientes aos não-conhecedores da cultura Maxacali, ao exemplo do enfrentamento dos morcegos-espírito, da destruição de um boneco ou do gesto de molhar homens cobertos com pedaços de madeira.

O filme soa muito novo, diferente, e ao mesmo tempo muito antigo. Esta é uma questão de ponto de vista, é claro: por um lado, solicita-se ao espectador não-indígena uma posição ativa diante desta série de códigos que se sucedem sem articular uma história acessível aos padrões do cinema tradicional – ou seja, sem se encaminhar a uma finalidade precisa. Não é evidente a ligação entre cada nova ação, cada prato cozido, cada vestido costurado ou escultura fabricada. Cabe a nós, brancos, observar uma riqueza de encenações e construções alheias ao nosso conhecimento popular. Trata-se de uma percepção da criação indígena enquanto manifestação política, cultural e artística ao mesmo tempo: cada membro da comunidade, enquanto se veste em trajes típicos e age de modo específico, entoando cantos particulares, torna-se um ator, um diretor, um diretor de arte ou mesmo um produtor. Existe uma noção de mise en scène para além da captação do documentário: o ritual, em si, constitui a experiência de uma criação coletiva de autoria compartilhada.

Ao mesmo tempo, a aparência de novidade corresponde à nossa ignorância diante de algo, de fato, muito antigo, passado de gerações em gerações. Não se vê nenhum pai explicando aos filhos como agir naquelas circunstâncias: todos conhecem muito bem os seus papéis ao longo desta intricada performance de sete dias de duração, sem pausas. Durante a Mostra de Tiradentes, esta foi certamente a projeção mais ruidosa e, digamos, “interativa” da 23ª edição: as pessoas falavam alto, riam de deboche ou surpresa, perguntavam umas às outras o que estava acontecendo na tela. Era impossível calar as vozes que se multiplicavam por todos os lados. É curioso pensar que, em pleno século XXI, quando ninguém se choca mais com notícias falsas, imagens adulteradas, com denúncias de injustiças sociais, com a fragmentação excessiva da imagem ou a saturação de sons, o conteúdo mais perturbador provenha de uma experiência ancestral, de uma captação feita não para o nosso entretenimento, mas apesar dele. Somos convidados a testemunhar um ritual feito por outras pessoas, para outras pessoas, enquanto nos sentamos ali, na fileira de trás. A cultura Maxacali ao mesmo tempo se preserva e se expõe neste filme; ela se oferece a nós enquanto nos convida a fazer um gesto de compreensão em direção a ela.

Filme visto na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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