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Sinopse

Alice Diop, diretora francesa de origem africana, se questiona sobre os laços que mantêm uma nação unida. Como se constrói a coletividade em tempos de crise? Quais instituições e referências culturais representam um país atualmente?

Crítica

Quem somos “nós”, evocado pelo título deste filme? Nós, os franceses? Nós, os europeus de origem africana? Nós, os negros, os periféricos, as mulheres, os jovens? O filme de Alice Diop constitui uma maneira bastante livre de reformular esta questão à luz de uma França marcada por protestos, descontentamento com o governo federal e isolamento social. O gesto da cineasta poderia ser lido pelo viés da indagação filosófica e política: o que nos mantém unidos? O que faz com que eu me identifique os conterrâneos, mas sinta estranhamento em relação aos indivíduos do país vizinho? A autora foge à armadilha de responder a estas questões profundas num único projeto. O filme reflete com as ferramentas que cabem à criação artística: a forma, a linguagem, as metáforas e as fricções inesperadas entre cenas. Ela combina fragmentos tipicamente documentais com outros comuns às ficções, enquanto revela o dispositivo cinematográfico (os equipamentos de som em cena) e converte a si mesma em personagem, fazendo perguntas e reagindo à atitude das pessoas filmadas.

Em termos de estrutura, o documentário explora vertentes que raramente convivem num único projeto. A investigação das raízes familiares por meio do resgate de fitas cassete e gravações caseiras se combina com cenas de caça a animais na floresta, missas católicas mencionando reis franceses, a rotina de um mecânico maliano distante da mãe há décadas e os bastidores da narração em off efetuada pelo escritor Pierre Bergounioux. É difícil antecipar os próximos passos de Diop, e também determinar com clareza o significado de todas as suas metáforas. Algumas simbologias são claras: vide o piquenique tragicômico de jovens da periferia, rindo de canções de Edith Piaf e Jacques Brel, representantes de uma França branca e clássica com a qual não se identificam. Outras metáforas possuem significados obtusos, a exemplo das cenas de caça que abrem e fecham o projeto, possíveis representações de um ideal de nobreza, virilidade, patriarcalismo e propriedade, segredados da comunidade ao redor. De qualquer modo, os fragmentos se prestam a inúmeras leituras pela perspectiva do mergulho na coletividade.

Nous (2020) adota um posicionamento político evidente: para buscar o conceito de identidade nacional, em pleno século XXI, é indispensável dar voz às classes invisibilizadas. Em outras palavras, o “centro” só pode ser compreendido a partir de um estudo da margem. Diop adentra as casas de senhores idosos e solitários, aguardando pelos poucos minutos de atenção diários de uma enfermeira. Ela registra o trem de subúrbio cedo pela manhã, quando os trabalhadores de baixa renda se deslocam rumo a Paris, e visita museus dedicados à história da imigração. A diretora se mostra disponível à escuta, sem introduzir à força qualquer tese prévia. Em paralelo, demonstra tanto interesse quanto pudor pela intimidade destes indivíduos: durante os cuidados da enfermeira (a irmã da cineasta), a câmera permanece na parte externa ao cômodo, filmando o corredor e deduzindo o andamento das ações através do som fora de quadro. A vontade de abraçar a coletividade nunca faz com que o documentário se imponha às pessoas filmadas, nem as utilize enquanto objetos ou temas de estudo. Estamos distantes da observação sociológica ou antropológica, frequente nos anos 1960.

Em contrapartida, a narrativa imprime alta carga de afeto e construção poética. Para um documentário intitulado “nós”, Diop não poderia se isentar de participação. Ela efetua sua parte da narração em off em tom preciso e bruto, ideal para equilibrar o sentimentalismo das evocações da juventude (uma antítese da voz vaporosa de Petra Costa em Democracia em Vertigem, por exemplo). A falta de imagens da família e a reticência do pai em conversar sobre a imigração servem de símbolo para uma geração que cresceu sem referentes, por ter sua história apagada. O fato de a mãe de Alice Diop possuir uma única e breve gravação em VHS ilustra o apagamento da memória negra numa França ainda saudosa da monarquia e do colonialismo. Neste sentido, cenas como a missa para burgueses (uma plateia inteiramente branca) se opõe à multidão que espera o trem sobre a plataforma (um grupo inteiramente negro). Podemos nos considerar uma coletividade se as nossas partes não formam um todo? A cineasta declara, em conversa com Bergounioux, o alívio de encontrar escritores dedicados à representação da periferia.

A apreciação de Nous dependerá da disposição do espectador em traçar um caminho próprio a partir de fragmentos tão dispersos. Diop evita letreiros explicativos e demais recursos destinados a condicionar o olhar. Diante do banquete variado, compreende-se que certos trechos soem mais potentes do que outros, ou que algumas cenas se arrastem mais do que as anteriores. No entanto, a mise en scène demonstra a coragem de encarar temas complexos por meio de soluções criativas. A cineasta poderia ter adotado caminhos fáceis: a entrevista com professores universitários, o confronto direto entre os pontos de vista de patrão e empregados. Entretanto, prefere oferecer as peças para que o interlocutor as monte conforme a sua conveniência. Neste caso, o debate real se inicia quando os letreiros tomam conta da tela – uma vez explicadas as regras do jogo e oferecido o suporte, resta a nós brincar conforme pudermos. Os episódios jamais soam aleatórios ou forçados: cada um constitui um esforço de investigação da identidade nacional. Eles partem do princípio que, para abraçar um conceito amplo, o cinema precisa se expandir em igual medida: abrir-se à pluralidade de imagens, à convivência com a diferença e à multiplicidade de recursos oferecidos pelo cinema.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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