Crítica


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Sinopse

Felice Lasco decide voltar à sua cidade natal, Nápoles, na Itália, depois de mais de 40 anos morando no exterior. Depois de reencontrar a mãe já idosa que abandonou ainda na adolescência, ele vai tentar remontar a sua história.

Crítica

Felice Lasco (Pierfrancesco Favino) foi criado em Nápoles, mas migrou às pressas para além-mar com 15 anos de idade. Desde então, nunca tinha voltado à sua cidade natal, sequer para visitar novamente a querida mãe. Homem de negócios residente em Cairo, no Egito, ele finalmente retorna como que para prestar contas a si próprio num árduo processo de reconexão com o passado. Trata-se de uma dinâmica comum nos cinemas, especialmente no italiano. Produções como A Mão de Deus (2021) – que, por acaso, também se passa em Nápoles – e esse Nostalgia renovam o apreço cinematográfico do país do Velho Continente por lembranças e tradições. Dentro de uma perspectiva melancólica, o protagonista do longa-metragem dirigido por Mario Martone parece disposto a arrumar a casa, a correr em busca do tempo perdido. Primeiro, se encarrega de cuidar da mãe idosa que vendera o humilde apartamento de sua infância em troca do dinheiro socado numa gaveta (ou seja, ela nem sequer precisava do valor). Sinal da ação de algum espertalhão ou de que essa mulher sem muito futuro pela frente se autoriza a deixar o ontem para trás, ao contrário de seu filho preso aos dias que se foram? Conjecturas à parte, Felice intuitivamente sabe que não terá mais tanto tempo na companhia da mãe, então a trata como rainha. O filme não anuncia a urgência, mas a mantém implícita nesse percurso solitário.

Nostalgia possui tintas amarguradas. Nele, tudo gira em torno de um personagem tentando se reencaixar na sociedade deixada para trás há mais de 40 anos. Na adolescência, Felice era um inconsequente delinquente de ocasião, um aventureiro transgressor. Agora, adulto e maduro, precisa sair de uma zona confortável e (re)experimentar os odores e sabores de sua juventude. “Nápoles não mudou nada”, diz ele em certo momento com um tom que mescla pesar e notas de saudosismo. Especialmente depois do desfecho trágico, fica mais fácil compreender essa jornada íntima como um ritual. Felice perambula pela cidade repleta de obsolescência, dividida entre a criminalidade da Camorra e a ação corajosa do padre católico que tenta obstruir a expansão da bandidagem entre os jovens. No caminho à procura de algo difuso, o roteiro assinado por Mario Martone e Ippolita Di Majo cria uma noção de quebra-cabeças remontado. Felice passa um tempo com a mãe, entra novamente na igreja católica (sendo muçulmano), revê figuras de sua infância que nem sempre estão nítidas na memória e tenta encontrar informações sobre o melhor amigo que deixou para trás depois de uma tragédia. No entanto, Martone não pontua didaticamente o que as situações significam ou mesmo a qual finalidade o protagonista deseja chegar. Tudo é impreciso e volátil como as lembranças, ora petrificadas, ora indefinidas.

Pierfrancesco Favino ganha um presente com Felice. Sim, pois o papel lhe permite centralizar as atenções dessa trama na qual introspecção é fundamental. Caso o protagonista coubesse a um ator menos qualificado/experiente, certamente esse estado de espírito poderia ser confundido com apatia. Não é que Felice seja tímido ou algo que o valha, aliás, bem pelo contrário, pois as suas interações com os demais personagens são desprovidas de receio ou cerimônia. No entanto, o que verdadeiramente importa nesse filme atento ao intangível e ao impermanente está nas lacunas, nos não ditos, nas respirações prolongadas que significam mais do que as palavras conseguem pronunciar. E o astro italiano sobressai, justamente, por conta da riqueza de sua composição. Já o contexto social deixa um pouco a desejar. Por exemplo, o antagonismo entre o padre católico e o ex-amigo mafioso é encarado como simples queda de braço entre bem e mal, com poucos elementos tornando mais complexo esse panorama. Faz sentido que o excedente à batalha íntima de Felice seja enxergado como arquetípico, mas um ajuste fino na observação da corroída sociedade napolitana provavelmente garantiria ao filme uma possibilidade de voos ainda maiores. Martone sequer evolui a discussão a partir de um gesto controverso do padre, o de induzir o muçulmano a beber vinho, como se recuperasse a ovelha.

A angústia resultante do choque entre passado e presente é o motor de arranque de Nostalgia. Esse sentimento poderoso que dá nome ao filme é encarado como ambíguo, pois traz à tona lembranças calorosas dos verdes anos da adolescência, mas também funciona como uma âncora capaz de encaminhar um futuro trágico. A insistência de Felice em voltar à cidade que teima em enxotá-lo para fora pode ser tida como resposta inconsciente (e autodestruitiva) aos diversos sentimentos provocados por estar novamente no solo onde estão plantadas as suas raízes. Em são consciência, quem abandonaria uma vida confortável construída no Egito e voltaria a morar numa localidade decrépita, apenas por ela conter a memória de uma fase de aventuras? Outro ponto fraco do longa-metragem selecionado para a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano é que certas situações parecem um pouco vagas, como o resultado da visita a uma família que recorre ao crime para sobreviver, com isso impedindo o filho adolescente de seguir o caminho da música. Em sentido estrito, trata-se de uma estratégia do padre para Felice compreender certas coisas a respeito dessa Nápoles do presente, diferente daquela que lhe inspira saudade. Mas, a importância desse tipo de cena é questionável dentro da busca resoluta de um personagem pouco influenciável e aparentemente disposto a ir às últimas consequências. A imprecisão é ora inimiga, por permitir algumas dispersões, ora é aliada, por justificar a instabilidade do cenário.

Filme visto durante a 10ª 8 ½ Festa do Cinemas Italiano, em junho de 2023

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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