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Sinopse

Uma verdadeira jornada em busca de uma escrita original, encenação da cultura aimará. Um documentário que mergulha nas dobras da representação e refuta os rótulos.

Crítica

A equipe de Nosotros, los Barbaros (2020) aparece em frente às câmeras, lado a lado, sobre o fundo preto de um cenário. O diretor Juan Alvarez-Durán explica que seu filme busca “uma nova forma de ver essa dialética que a Bolívia sempre teve”, mencionando a presença da língua espanhola oficial junto à língua andina aimará, progressivamente esquecida pelas novas gerações. Os jovens membros da equipe confessam o desconhecimento quanto ao formato do filme, esperando para descobrir o resultado apenas na versão finalizada e legendada (“Tem muita coisa em aimará, e ninguém fala aimará aqui”, justificam). Um senhor idoso, representante desta cultura, elogia o próprio filme aos colegas, afirmando que já assistiu a diversos documentários contendo entrevistas, mas nunca tinha visto algum com representações poéticas em estúdio. Este procedimento surpreende: o filme verbaliza suas intenções, valoriza sua existência pela raridade e ousadia, além de fornecer uma espécie de explicação de procedimentos, típica dos making ofs, durante a projeção.

Para o espectador focado especialmente na criatividade e no senso de distinção (em relação à média dos filmes lançados), este projeto se tornará particularmente interessante. De fato, o cineasta combina estilos e recursos incomuns tanto nos documentários sociológico-etnográficos quanto nas docuficções de teor afetuoso. A montagem incorpora cenas de visitas a museus em horários fechados, como se não houvesse planejado o passeio; acrescenta a busca por pessoas jamais encontradas e conversas com idosos falando aimará em volume inaudível. Dentro de um estúdio muito simples, ornado com um painel colorido, o diretor pede a especialistas desta tradição que expliquem as letras do alfabeto, o modo específico de contar, a visão da medicina aimará e assim por diante. Enquanto isso, a câmera se posiciona atrás de dois rostos, simulando a plateia de uma palestra, e depois instala-se no alto do estúdio, registrando o médico pela cabeça, ou posiciona objetos aleatórios em frente à lousa do professor, cobrindo o conteúdo explicado. Em alguns momentos, o enquadramento se inclina, e a câmera fica deixada no chão. Nada soa convencional na maneira de filmar.

No entanto, cabe pensar se tamanha multiplicação de estilos resulta na melhor representação do tema escolhido. É possível que esta dança improvável entre o cinema-performance e o cinema amador (as filmagens externas são realizadas com câmera na mão, tremendo, em textura digital de baixa qualidade) chame mais atenção à direção do que ao objeto de estudo. As conversas na língua andina, entre pessoas idosas, jamais ganham legendagem, algo que seria interessante caso o filme explorasse a sensação de estranhamento da jovem equipe face à herança tradicional boliviana. Ora, o recurso é deixado como tal: incapaz de compreender previamente o que algumas das falas significam, Alvarez-Durán limita-as à sua sonoridade. Enquanto isso, revela o boom dentro do enquadramento, sobrepõe animações aos corpos dos entrevistados, inclui letreiros ao lado dos atores em estúdio. Os elementos acessórios se acumulam, distraindo a atenção do espectador ao invés de convergir a um discurso coeso. Não por acaso, a melhor cena do filme se encontra no testemunho mais clássico-narrativo, quando um homem confessa a tristeza de ver suas tradições se perdendo dentro do país. Trata-se de um momento singelo, mais próximo do valor humanista. Nesta curta cena, os povos andinos falam por si mesmos, sem se limitarem à condição de protagonistas de uma encenação ostensivamente artificial.

Quanto às recriações em estúdio, o dispositivo carrega um misto de intimismo e extravagância. Os expositores aimarás possuem microfones acoplados perto da boca, como se estivessem discursando a uma gigantesca plateia. Eles estão bem vestidos para a ocasião, dando a impressão de um evento formal – em algumas cenas, os painéis simulam a aparência de um museu. No entanto, a direção de fotografia se contenta em jogar um ou dois focos intensos de luz sobre os rostos, provocando sombras profundas e prejudicando os detalhes das lousas, das roupas e dos personagens. Por que a captação em estúdio fechado necessitaria de microfones aparentes, ou demonstraria tamanho descontrole de luz? Embora as deficiências nas cenas externas sejam compreendidas pelo baixo orçamento evidente, e pela dificuldade de reagir à espontaneidade das pessoas, a organização caótica em espaço fechado soa menos justificável. O que estes homens e mulheres teriam a dizer fora da aula de língua aimará? Que episódios trariam de suas famílias, sua trajetória, sua percepção do apagamento de um patrimônio nacional? O cineasta desperdiça a oportunidade de valorizar estas pessoas por sua subjetividade.

Por fim, Nosotros, los Barbaros transparece o efeito típico de uma obra elaborada sobre uma cultura, ao invés de se desenvolver com ela, em regime de parceria e coautoria. As poucas pessoas aimarás presentes são tratadas ora como especialistas a quem a câmera presta pouca atenção, ora como indivíduos de fala obstruída pela barreira linguística. Estas figuras jamais adquirem protagonismo, nem falam por si próprias: elas são encarregadas de transmitir uma complexa evolução histórica, sem que a direção investigue as causas do desaparecimento do modo de vida andino. Que formas de resistência aimará persistem na sociedade atual – tanto nos vilarejos quanto nos meios acadêmicos? De que modo a riqueza de tradições se reflete no dia a dia destas pessoas? Teria sido mais rico observar uma das refeições no chão, mencionada por um entrevistado, do que escutá-lo falar a respeito. O projeto transparece tanto o vigor de uma equipe disposta a ultrapassar barreiras orçamentárias quanto a ausência de uma produção firme, capaz de podar repetições e efeitos decorativos. Talvez o diretor tenha seguido o caminho mais difícil através de seus painéis, microfones e visitas a lugares fechados. Uma conversa franca e um encontro nas casas das pessoas falando aimará entre si trariam mais valor humano do que a aula magna em estúdio, para uma plateia simulada de dois atores.

Filme visto online no XI Festival Internacional Pachamama – Cinema de Fronteira, em maio de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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