Crítica


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Sinopse

No meio das florestas da Costa do Marfim existe a MACA, uma prisão singular controlada pelos próprios detentos. Quando um jovem é levado à instituição, ele é imediatamente escolhido como o Roman - um contador de histórias obrigado a entreter os prisioneiros durante a primeira noite de lua vermelha, sendo sacrificado ao fim do ritual. Enquanto conta suas histórias de crime e fantasia, o novato bola planos para permanecer vivo até o dia seguinte.

Crítica

Neste drama, o diretor Philippe Lacôte convida o espectador a uma viagem labiríntica. O cenário da prisão lotada sugere uma familiaridade que o filme desconstrói cena após cena: compreendemos que a instituição é gerida pelos próprios detentos, e que a noite de lua vermelha carrega grande importância para eles. O líder se chama Barba Negra, disputando terreno com Lass e Meio-Louco. Quando um jovem chega ao local, é eleito o “Roman”, cargo de que nunca ouviu falar. Os rituais praticados coletivamente envolvem canto, dança, lendas narradas em círculo, performances, a exploração do corpo de travestis, duelos de magia, mortes sangrentas, pessoas se afogando em piscinas e almas transformadas em alces. Nenhum destes elementos se explica previamente ao público: juntamos as peças aos poucos, descobrindo a relação entre aqueles homens conforme se desenvolvem à nossa frente. O Roman (Bakary Koné) é obrigado a contar histórias aos colegas de cárcere, sem parar, durante uma noite inteira. Ele sabe que será assassinado ao final da cerimônia. Não há justificativa para nenhum destes gestos: as pessoas se comportam dessa maneira em nome de uma tradição anterior a si próprios. A prisão se sustenta graças ao rígido código moral.

A narrativa oferece um teor radicalmente distinto daquele que o cinema brasileiro, por exemplo, já construiu sobre o cárcere. Noite de Reis (2020) propõe uma fábula de estranhamento, onde somos levados a questionar quem é cada personagem, porque age desta maneira, e qual relação mantém com os demais. O espectador invade uma maquinaria de regras estranhas e precisas, sendo o último a decifrar, junto ao novato Roman, como funciona o mecanismo. As fábulas envolvendo reis e rainhas, soldados e sábios, aproveitam o folclore da Costa do Marfim. Ironicamente, o herói se transforma numa figura ao mesmo tempo condenada e privilegiada (as atenções estão voltadas a ele, partindo de homens que absorvem com atenção cada frase narrada). A hierarquia neste espaço foge às questões de poder financeiro, contatos no mundo lá fora, força, virilidade ou histórico do crime. A propósito, a sociedade ao redor sequer existe: a câmera fica presa à prisão da primeira à última cena, evitando estabelecer contato com o meio urbano para além dos flashbacks do protagonista. Se estes homens possuem família, crenças religiosas, posicionamentos políticos ou desejos no futuro, jamais saberemos. Eles se convertem numa massa indistinta, ruidosa e sincronizada, gritando frases de efeito e lemas de guerra.

Assim, o universo não é construído para o espectador, e sim apesar dele. Em oposição a tantos filmes que se esforçam para agradar o interlocutor com piadas leves, finais otimistas, trilhas sonoras agradáveis, reviravoltas esperadas e explicações didáticas, a obra marfinense contextualiza o mínimo necessário, estimando que o prazer se encontra na capacidade de se perder, ao invés de se encontrar. As referências a Cidade de Deus (2002), mencionado pelos personagens para batizar criminosos, e pela cena da perseguição da galinha, apenas reforçam o abismo entre o filme brasileiro, interessado em criar um ritmo empolgante e uma criminalidade sedutora, e o equivalente africano, desprovido de ornamentos e recursos facilitadores. Lacôte pede que se acredite na história deixando de lado a razão, em pacto similar àquele estabelecido entre crianças e adultos quando compartilham fábulas de animais e princesas. As coisas são assim. Quando Roman menciona um escorpião, cinco homens se levantam e, juntos, interpretam escorpiões com seus corpos reunidos. É estranho, potente, improvável, fantástico.

Deste modo, a prisão se afasta do ultrarrealismo ou do cenário de sujeiras e sordidez, transformando-se em espaço fabular. Nenhum homem ali dentro é santo, conforme os próprios afirmam, nem mesmo Zama King, o ídolo ausente que domina as conversas. No entanto, mostram-se capazes de gestos típicos da dança contemporânea, de articulações coletivas semelhantes à performance pública, e de cantos improvisados e simultâneos, próximos de um musical. Passada a surpresa inicial face a diálogos do tipo “Ao sair dos muros dourados, não podemos realizar sonhos”, e “Eu, Zama, sou como o vento. Só quem puder colher o vento poderá me pegar”, o espectador pode enfim apreender o realismo fantástico fora do regime de verossimilhança. Os atores entoam suas falas como se declamassem Shakespeare sobre o palco; o Silêncio (Denis Lavant) perambula pelos corredores quase sem ser percebido pelos demais, os sussurros e recados escritos entre prisioneiros remetem a uma extensa brincadeira de telefone sem fio. A proposta consegue ser tão violenta, incluindo estupros e decapitações, quanto inocente na crença de que apenas a arte pode salvar Roman. “Decifra-me ou devoro-te”, dizia a esfinge, adaptada neste caso a “Diverte-me ou devoro-te”. A arte nunca pode parar.

Noite de Reis resulta numa proposta exigente ao espectador em termos diegéticos, visuais e culturais. Em diversas sequências, flerta com o cinema experimental e/ou amador, surpreendendo em seguida através de cenas repletas de efeitos especiais. Há muito acontecendo na linguagem cinematográfica, e pouco acontecendo na narrativa – a história inteira se passa durante uma noite, em locação única, através do conflito do Roman. As sequências atingem o paradoxo de serem calmas demais (pois não fazem avançar a trama) e caóticas (porque abraçando dezenas de homens em cada plano, gritando e pulando). Em se tratando de uma lenda sobre outras lendas, satisfaz pela criatividade, a ousadia e a importância conferida à ambientação. No entanto, frustra as expectativas de quem gostaria de ver o banquete de símbolos em relação um pouco mais estreita com o real. Pela pluralidade de registros, os atores partem para estilos totalmente distintos: o adolescente Bakary Joné traz uma atuação crua e inexperiente, Barba Negra (Steve Tientcheu) adota ares de astro do teatro clássico, Denis Lavant encarna o ser estranho e marginal que lhe desperta tanto prazer. Apesar de sucinto em tempo e espaço, o drama fornece uma explosão de estímulos, tons e referências. A saturação se torna um fim em si – uma forma de homenagear a cultura marfinense e praticar uma visão libertária do cinema autoral.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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