Crítica


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Sinopse

Em No Ritmo da Fé, uma iniciante na música começa uma jornada de iluminação depois de um assalto que culminou num encontro. Camila é aspirante à compositora, enquanto que Graça é uma mulher cristã que a convida para substituir o antigo guitarrista da banda gospel do filho dela, Davi. Do mesmo diretor de Gostosas, Lindas e Sexies (2017).

Crítica

Por mais superficial que possa parecer, todo filme possui intenções. Embora espectadores inocentes teimem em dizer coisas do tipo “mas esse é apenas entretenimento”, nenhuma obra audiovisual é isenta e inocente. Todas são elaboradas a partir de ideias, conceitos, percepções e dotadas de propósitos. No Ritmo da Fé não esconde a que veio: é um longa-metragem de orientação ideológica religiosa, mais precisamente a cristã, e em nenhum momento tenta vender outra imagem senão a da felicidade como produto da aceitação de Deus. A protagonista Camila (Mharessa) é a típica ovelha desgarrada que sofre por não venerar uma divindade onipresente, onipotente e onisciente que, benevolente, às vezes escreve certo por linhas tortas. Então, a questão problemática está longe de ser a ideia defendida, que pode ser mais ou menos assimilada de acordo com a predisposição das plateias, mas o modo como ela é apresentada e desenvolvida. Camila é assaltada e perde, além do celular, o violão que a ajuda a se expressar. A cena é desajeitada, com sujeitos sem rosto se aproximando da menina impecavelmente vestida e surrupiando o bem (material e imaterial ao mesmo tempo). Aqui vale uma pausa para expor a artificialidade dos elementos não verbais do filme, a total falta de expressividade de figurino, maquiagem e fotografia. São departamentos ineficientes do ponto de vista dramático.

Em No Ritmo da Fé, o cabelo sempre perfeito de Camila, as roupas sem personalidade, o interior pouco marcante das casas, tudo aponta à ineficiência dos componentes não verbais para expressar detalhes a respeito dos personagens e da atmosfera. E qual é o efeito mais imediato disso? A sobrecarga dos diálogos. Tudo o que somos levados a sentir e a deduzir passa pelas palavras, o que torna o filme excessivamente verborrágico e invariavelmente explicativo. E isso compromete até a transmissão da doutrina cristã sobre a qual o cineasta Ernani Nunes tenta construir o seu castelo. É preciso suspender a descrença para “comprar” Camila como uma jovem perdida em busca de algo que a reoriente, até porque as poucas cenas dela com o pai são desprovidas de verdade. Tudo parece ligeiramente robótico. Os personagens falam que estão tristes, desabafam sobre frustrações, se calam diante da incapacidade momentânea de dizer a que vieram, mas nada disso convence. Falta convicção às cenas, efeito-colateral de uma direção displicente que transfere à palavra mais do que a primazia, pois a encarrega de tudo. As atuações pouco inspiradas, o caráter previsível do roteiro e o moralismo são outros culpados pela experiência retilínea e uniforme que sequer funciona como instigadora de reflexões pertinentes. Os problemas não são encarados com seriedade, pois meros obstáculos a serem vencidos na fé.

Camila é apresentada como alguém em sofrimento que nega Deus desde o primeiro contato com os desígnios dele. No carro com a benfeitora (Negra Li), ela pede para trocar a estação de rádio que toca a canção gospel; adiante fica cabreira diante do convite para integrar a banda de músicas cristãs. Portanto, de acordo com o discurso do filme, ela é a ignorante que alcançará a paz de espírito e a felicidade apenas quando aceitar Jesus e compreendê-lo como único caminho a uma vivência plena. Repetindo: problema nem é a mensagem, mas a forma como ela é construída de modo manipulador, no pior sentido da expressão, pois visa a venda de um estilo de vida “ideal e perfeito”. Os personagens cristãos têm compreensão irrestrita e uma paciência enorme diante dessa menina “revoltada” que passa por problemas existenciais. Exemplo disso é a cena em que Camila se cobre inteira com medo de ser rechaçada no meio religioso por conta de suas tatuagens. A câmera de Ernani enfatiza a pele rabiscada de Davi (Isacque Lopes), o líder da banda gospel, com o intuito de sublinhar o preconceito da ainda não convertida. Como esse, há vários outros instantes que mostram Camila como uma pessoa que fala bobagens a respeito dos crentes por pura ignorância. A mensagem é clara: apenas é contra o cristianismo quem não o conhece. O discurso é o da publicidade, o que celebra estilos de vida para vender produtos.

Outro exemplo de simplificação que o filme faz em prol da comercialização do estilo de vida cristão é o comportamento tosco do músico que Camila substitui. O roteiro assinado por Manuela Bernardi não faz o mínimo esforço para encarar as atitudes agressivas desse sujeito como decorrências da frustração por conta do acidente que o invalidou momentaneamente e tampouco enquanto medo de ser obscurecido pela novata. Ele é restrito ao papel do chato que fica enchendo o saco da protagonista. Com isso, causa pequenas fagulhas de tensão no idílio campestre ao qual Camila foi convocada pela escrita certa em linhas tortas de um Deus que ela negou veementemente no passado. Por que será que em grande parte dos filmes religiosos o personagem principal é o descrente cuja conversão se premia com promessas de felicidade eterna? Não há outra maneira de defender um estilo de vida e as suas implicações? Portanto, o problema aqui não é ser cristão, longe disso, afinal de contas os idealizadores têm o direito de professar aquilo que desejarem. As restrições feitas aqui dizem respeito ao modo como o filme repete chavões discursivos e estilísticos de produções religiosas pregressas, sem ao menos demonstrar quaisquer traços de personalidade e ainda sobrecarregar a palavra por transformar os elementos da imagem e a própria mise en scène em mera questão de protocolo audiovisual.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
3
Alysson Oliveira
1
MÉDIA
0.5

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