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Sandra Kogut tinha como intenção realizar um documentário que servisse de registro para o ano eleitoral de 2022 no Brasil, com foco, principalmente, na disputa presidencial e na cisão que tomou conta do país entre apoiadores do então presidente em exercício, Jair Bolsonaro, e o líder nas pesquisas, o petista Luís Inácio Lula da Silva. O projeto original, no entanto, acabou sendo alterado e, para se adequar as novas circunstâncias que iam se impondo, foi se estendendo mais do que o planejado. Primeiro veio o choque do Primeiro Turno, quando muitos apostavam que o candidato de Esquerda poderia ter sido eleito de imediato. Depois, o Segundo Turno e todo o sofrimento por mais um mês até uma vitória – de virada – confirmada apenas nos últimos minutos. Por fim, chegou-se a imaginar que os trabalhos teriam se encerrado com a posse do novo presidente em 01º de Janeiro, mas bastou mais uma semana – e o fatídico dia 8 – para que tudo ganhasse novas proporções. Esse é o percurso trilhado por No Céu da Pátria Nesse Instante, um filme que diz respeito não apenas ao tortuoso caminho trilhado, como também visto pelo olhar de quem o conduziu – no caso, a própria cineasta. Com tudo de bom – e de ruim – que isso possa depreender.
Em passagem pelo 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, onde participou da mostra competitiva nacional de longas-metragens com esse trabalho, Kogut afirmou que “muito poderia ter sido feito diferente, mas se assim tivesse sido, não seria o meu filme”. Ou seja, como também declarou em entrevista ao Papo de Cinema, ela fez o relato que quis, e suas escolhas foram conscientes. Isto, per se, não aponta demérito algum. Afinal, grandes produções do gênero já foram feitas a partir de posicionamentos absolutamente pessoais – o mestre Eduardo Coutinho deixou como herança provas cabais dessa verdade. No entanto, é de se questionar, uma vez terminada a sessão, se a diretora não estaria preocupada em apenas “pregar aos convertidos”. Por mais catártico que muitas das passagens vistas em cena possam ser aos espectadores que compartilhem do ponto de vista da cineasta – uma artista de forte posicionamento político, como alguns dos seus filmes anteriores, como Campo Grande (2015) e Três Verões (2019) deixam claro – o que de novo o discurso aqui exposto se propõe a agregar a este espectador?
Muito desse entendimento vem do recorte proposto. Kogut reúne nada menos do que nove personagens em sua trama. Com tantos presentes, seria quase impossível concedê-los a profundidade necessária para que não apenas sejam individualizados, mas também que suas lutas e leituras fossem além de uma superfície quase estereotipada. Assim, tem-se a militante das redes sociais, a delegada de partido, aquela que se propõe a um esforço quase professoral para atuar ao lado da distribuição das urnas e o pleno serviço de suas funcionalidades, etc. É um filme muito feminino, como se pode perceber, mas também bastante vermelho – entendedores entenderão, como diz o meme. O lado político da realizadora é anunciado – e, veja, bem, isso não é problema. Afinal, não se está diante de um relato jornalístico – a própria imparcialidade do jornalismo é um assunto que há muito vem sendo debatido – mas de um longa assinado, e é o olhar dessa pessoa que está em exibição. Por outro lado, no entanto, não se pode imaginar que dê conta de todo um país – ainda mais um de proporções continentais como o Brasil. E eis seu maior tema de discussão.
Pois se percebe um esforço em abranger uma maior complexidade na busca por este relato. Tanto que, se há muito das mulheres empenhadas em levar adiante a causa da Esquerda, há também dois homens que, meio que de forma enviesada, servem como contraponto. O marido de uma família do Paraná, que trabalha como caminhoneiro e, portanto, passa muito tempo longe dos grandes centros, é o retrato do bolsonarista vítima de lavagem cerebral, que se recusa a obter informações pelos meios oficiais e acredita apenas naqueles iguais a si, se orientando por discursos enviados por Whatsapp ou sermões do pastor evangélico na igreja onde frequenta. O outro é um ambulante, um camelô que ganha a vida anunciando camisetas e bandeiras dos dois candidatos, torcendo para que o seu favorito – Bolsonaro – saia campeão ao menos no seu ranking pessoal de vendas. As tentativas de diálogo de Kogut com ambos respondem pelos melhores momentos. São conversas truncadas, que inevitavelmente esbarram na falta de argumentos e numa fé cega que abre mão da lógica em nome de algo que nem mesmo eles conseguem explicar, apenas “sentem”.
Fosse uma investigação centrada em entender esse inexplicável e que buscasse, de uma forma ou de outra, compreender o fenômeno da alienação provocada pela Extrema Direita, talvez No Céu da Pátria Nesse Instante provavelmente se mostrasse mais surpreendente – afinal, trataria de algo que pouco dos mais elucidados tem acesso. Seria uma tarefa hercúlea, pois o acesso a esse “outro lado” é por vezes demais difícil, mas será mesmo impossível? Eis a questão. No entanto, mais complicado ainda é avaliar um filme pelo que ele é, e não pelo que poderia ter sido – ou pelo que o espectador gostaria (ou esperaria) ter encontrado. Dito isso, eis uma obra séria, contundente em sua proposta e bastante pessoal, que coloca em evidência um Brasil muito carioca, com poucos escapes dessa visão regional – o mais distante que vai é na participação de uma militante isolada na ilha de Marajó. Longe de se mostrar definitivo sobre o tema – e bem provável que nem tenha sido essa a intenção da realizadora – se confirma como uma peça importante de um quebra-cabeça maior e mais intrincado, afinal, não basta apenas ter passado por tal situação: é preciso também que essa sirva de reflexão, tanto como alerta, mas como aprendizado. E, nesse ponto, a mensagem está posta.
Filme visto durante o 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em dezembro de 2023
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