Sandra Kogut é uma das realizadoras mais ativas do cinema brasileiro contemporâneo. Longas como Mutum (2007), Campo Grande (2015) e Três Verões (2019) lhe renderam passagens e premiações em alguns dos mais importantes festivais do Brasil e também no exterior (Berlim, Cannes, Bogotá, Havana, Málaga, Mar del Plata, Miami, Roterdã e Paris são apenas os de maior destaque). Desde Um Passaporte Húngaro (2001), há mais de duas décadas, no entanto, ela não se aventurava pelo documentário – com exceções de alguns projetos para a televisão. Essa situação mudou com a exibição de No Céu da Pátria Nesse Instante (2023), selecionado para a mostra competitiva nacional de longas-metragens do 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. O doc se propõe a registrar o turbulento ano político de 2022 no Brasil, com especial interesse para a campanha presidencial e a divisão que tomou conta do país entre os apoiadores dos dois principais candidatos, culminando na tentativa de golpe ocorrida no dia 08 de janeiro de 2023. Logo após a sessão, na manhã do dia seguinte, a diretora conversou com o Papo de Cinema sobre suas motivações com esse projeto e o que espera ter alcançado com sua contribuição nesse debate. Confira!
Olá, Sandra. Com tantas horas filmadas e personagens que vemos na tela, como foi o processo de escolha do que entraria e, principalmente, do que sairia da versão final? Como foi encontrar o que você queria fazer?
Ótima pergunta. Até acho que todo projeto, em algum momento, pode ter várias possibilidades. Resulta das escolhas que você vai fazendo. Nesse, no entanto, isso foi mais presente do que em qualquer outro. Ele realmente foi fruto de um processo. Aliás, acho que deste material ainda dá pra fazer muita coisa. Tenho desejo de explorar mais disso que consegui registrar. Normalmente, quando você faz um filme, faz também um milhão de escolhas. Até que fica com o material que sobrou, com o que sobreviveu a essas eliminações. Nesse caso, ainda tem muito a ser explorado. Por outro lado, estou feliz com o que tenho agora. São escolhas muito claras. É importante que aquilo deixe perguntas. Por exemplo, quando vou assistir a um filme, adoro quando começo a me interessar pelos personagens secundários, e até penso: “puxa, poderia ter um outro só sobre esse cara aí”. Sinto isso quando gosto do que estou vendo. E saber que isso está acontecendo também com o meu, acho até bom.
Você tem ao todo nove personagens. Mas não há equilíbrio entre os dois lados: há mais petistas do que apoiadores do Bolsonaro. Como foi essa seleção?
Não acho que esse equilíbrio seja matemático, uma estatística. Não é sobre esse ou aquele lado. É sobre o Brasil, e nós todos estamos vivendo essa situação. Essa violência, essa incomunicabilidade, esse medo, essa incerteza. Está todo mundo, independente do lado no espectro político, passando por isso. Quando entendi isso, essa conta, de quantos seriam para cada lado, deixou de ter importância.
Teve quem ficou de fora, quem você queria que entrasse e não conseguiu?
Tem muita coisa que não tá no filme. Um filme é um olhar. E a verdade é a do filme, não se trata de uma coisa absoluta. É diferente de uma tese sociológica, por exemplo. Então, o que tenho é resultado de escolhas deliberadas. Por exemplo: queria que fossem muitas mulheres. Os dois únicos personagens homens são os bolsonaristas. E essa foi uma escolha, que é sempre complexa, com muitas camadas. Como construir um todo a partir daquele grupo que você reuniu? É um longo processo. E nesse filme, ainda mais do que nos outros, pela escala, pelo tamanho. A geografia foi um elemento decisivo. Não queria o Brasil por completo, mas um Brasil. Um filme é só um filme, é importante lembrar. Na verdade, quando você assina, não se trata de um gesto de vaidade. Pelo contrário. É modéstia. Você está dizendo: “isso aqui, em tal momento, era como eu via essa questão”. Provavelmente, se fosse fazer esse filme daqui dois anos, seria um outro resultado. É um olhar, um recorte de um momento.
No Céu da Pátria Nesse Instante tem momentos muito catárticos. Assistir ao filme é reviver situações importantes da nossa história recente. Porém, não passou pela tua cabeça que pudesse estar apenas ‘pregando para convertidos’?
Claro, me perguntei isso muito. Fui percebendo, ao longo do processo da montagem, quando mostrava para alguém próximo, um colega, e também para um diretor amigo meu, e volta e meia me diziam: “nossa, vivi tudo de novo, aquele mesmo medo, já sabia o que ia acontecer”. Quando decidi fazer esse filme, era uma dúvida que me inquietava: não tem suspense nenhum, né? A gente sabe o resultado dessa eleição. Foi quando entendi que, na verdade, a pergunta era outra – e por isso decidi começar com o 8 de janeiro. Nós chegamos nisso aqui. Como foi possível? Não está construído numa surpresa, mas em você, de novo, reviver algo. E com a ideia de que, a cada vez que revive, descobre novas coisas.
Você considera a família de bolsonaristas que está no filme como representante de todos esses apoiados do ex-presidente?
Não posso jogar nas costas deles essa responsabilidade. Mas representam uma parte disso, com certeza. De novo, o filme não tem a intenção de esgotar o assunto.
A grande surpresa é esse outro lado. Sabemos que o Brasil está dividido. Como você conseguiu acessar essas pessoas?
Foi dificílimo. Tentamos muito, de várias maneiras, contato com eles. Muitas vezes investi num personagem, fiz várias conversas, e na última hora a pessoa desistia, ou simplesmente sumia. Aconteceu em mais de uma ocasião. Por isso, também, coloquei aquele áudio no começo do filme. Aquilo serve para dar uma situada: “olha, estamos nessa situação”. E é interessante, pois essa dificuldade é também um assunto. Não sou uma pessoa de fora que está chegando em um país desconhecido e decidiu olhar para esses dois grupos! Eu faço parte de um deles. Também estou ali, também sou cidadã, também votei. Se derem um google, veriam quem eu sou, não me escondi de forma alguma. Tudo isso, de alguma maneira, está em cena. É uma relação minha com eles. E claro que foi difícil.
Durante a sessão no Festival de Brasília, teve muitos risos. Há uma sensação de ter humor no filme, mas por outro lado é assustador, até mesmo trágico perceber em que ponto chegamos nessa cisão do país.
Mas o riso é complexo. Às vezes você ri de nervoso, de aflição. Não é só relaxado, despreocupado. Entendo que as pessoas que riram durante a sessão, era também pela perplexidade. “Não acredito que isso seja possível!”. E quantas vezes isso aconteceu durante o último ano, de ouvir pessoas falando coisas, acreditando em coisas completamente absurdas, sem a menor comprovação?
Você buscava esse tipo de reação do público? Ao colocar em evidência tantos disparates, já esperava esse retorno do espectador?
Sim, com certeza (risos). Ao mesmo tempo, queria estar sempre em um lugar humano, ao lado dos personagens. São todos muito complexos, com seus lados bons e ruins também. Eles mesmo riem de si, em mais de uma vez. O filme tinha que expressar isso.
Vocês já possuem distribuidor? Como foi a passagem pelo Festival de Brasília e quais os próximos passos?
A janela é cinema. Então, vamos percorrer uma carreira de festivais para depois ir para os cinemas. Por fim, virão as plataformas de streaming, VoD e televisão. Mas tudo isso, como tem sido de praxe nesse filme, “estamos trocando pneu enquanto o carro está andando” (risos). Estamos pensando e entendendo o que fazer à medida em que as coisas estão acontecendo. Mas fiquei muito feliz com essa sessão em Brasília. Foi super em cima, nem imaginava que pudesse ser uma possibilidade. Porém, logo ficou evidente. E decidimos apostar. Não teve planejamento. Mas parecia ser a coisa certa, e foi confirmado. Achei sensacional.
Entrevista feita em Brasília em dezembro de 2023
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