Crítica


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Sinopse

Um cartel mexicano de drogas transporta cocaína ao Canadá, passando pelos Estados Unidos. Quando o comboio fica comprometido, o chefão envia dois capangas de confiança para analisar a situação.

Crítica

Filmes como Na Rota do Tráfico não existem para propor ao espectador uma participação ativa na construção de sua narrativa, a fim de gerar debates múltiplos e afins. Isso, porque há teses a serem defendidas. Nele não há entrelinhas, subtextos, arestas, nada que possa relativizar a frontalidade com a qual o realizador apresenta fatos e comportamentos, vedando-os às interpretações divergentes. Na verdade, aqui o roteirista e diretor Jason Cabell estabelece um percurso absolutamente didático para mostrar, tão e somente, porque a falibilidade da justiça seria suficiente para endossar que “os fins justificam os meios”. A forma encontrada é esmiuçar as etapas que levam um produto inicialmente cotado a US$ 1.600 por quilo a chegar ao consumidor custando US$ 34.000 pela mesma quantidade. Para que essas duas intenções tenham alguma importância, ele passa por cima do elemento humano, reduzindo as pessoas aos papeis que elas cumprem nessa cadeia pormenorizada de modo esquemático. É como se fosse um documentário ruim sobre o narcotráfico, mas com arquétipos e desculpas esfarrapadas servindo aos diagnósticos conservadores e rasos sobre uma indústria.

Todos os elementos que concernem ao aspecto íntimo dos personagem são utilizados como pretextos nessa radiografia burocrática. O Cozinheiro (Nicolas Cage) é um dos principais nomes do cartel que opera do interior da Colômbia ao Canadá. Sua missão de supervisionar esse longo percurso faz com que o filme fique aferrado a uma jornada descritiva. Não importa a subjetividade de ninguém, nem a da família de latino-americanos que processa a droga no estágio inicial, tampouco a do traficante siderado vivido por Laurence Fishburne. Na Rota do Tráfico, no entanto, não assume a própria intenção de privilegiar o funcionamento do esquema de narcotráfico, pois insere pequenas crises pessoais em meio aos procedimentos, como que sinalizando motivos superficiais e/ou efeitos nocivos de estar envolvido nesse mundo nefasto. A cobrança da porteira da escola à mãe colombiana é tão deslocada e desnecessária, dentro desse itinerário pedagógico, quanto a reprimenda da ex-mulher ao drogado que chega atrasado, e visivelmente alterado, ao recital de música da filha desapontada.

No que diz respeito à atuação policial, Na Rota do Tráfico é ainda mais leviano e perigoso, por celebrar a truculência, desde que a serviço dos "justos". A Agente Encarregada (Leslie Bibb) – os personagens não têm nome, são designados por sua atuação dentro dessa teia – lança mão de atitudes completamente reprováveis para garantir que o "certo" prevaleça. Primeiro, mexe seus pauzinhos para soltar o suspeito a fim de tortura-lo secretamente em função da obtenção de informações. Segundo, assassina friamente alguém que acredita estar blindado por um sistema tão corrupto quanto o do tráfico de drogas. Para além do elogio àqueles que fazem justiça pelas próprias mãos, assim não respeitando protocolos legais, está a forma canhestra como Jason Cabell tenta justificar tais atos. A perda de um ente querido em virtude da overdose é utilizada como uma espécie de salvo-conduto para que a portadora do distintivo atue no limiar da criminalidade. Não há qualquer tentativa de observar esse comportamento a partir de lógica da irracionalidade irrompendo motivada pela dor lancinante. Aliás, a personagem é tão mal construída que fica difícil saber efetivamente o que a impulsiona.

No fim das contas, se a intenção era mostrar o quão venoso é o narcotráfico para diversas vidas, porque minimizar nessa equação justamente o aspecto individual? Mas, tudo bem se a intenção fosse realizar uma leitura desalentada da atividade econômica capaz de desumanizar os componentes de sua extensa linha de produção. Não é o que acontece em Na Rota do Tráfico, filme que aglomera arquétipos em torno desse relato despersonalizado e sem qualquer espessura dramática. Nicolas Cage e Laurence Fishburne têm talentos desperdiçados ao longo de uma trama na qual seus personagens se aproximam perigosamente do ridículo, vide a montagem acelerada do Cara (Fishburne) transando (de cueca?) com duas prostitutas enquanto se entope de cocaína. Aliás, a cena limítrofe dos dois no penhasco também entra na categoria "beirando o constrangedor". Se inofensivo, o filme ainda poderia passar em brancas nuvens, sendo mais um esquecível entre tantos lançados. Mas a defesa crassa do justiçamento, bem como a negação de espaços para que o espectador chegue às suas conclusões sobre algo tão controverso, gera uma nódoa ainda maior na experiência de assisti-lo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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