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Sinopse

Irene é uma mulher negra vivendo no Harlem com o marido e os filhos. Certo dia, ao visitar as partes mais ricas da cidade, encontra Clare, sua amiga de infância. De cabelo loiro e pele maquiada, esta confessa se passar por branca atualmente, tendo se casado com um homem racista que não suspeita de suas origens. Essa decisão choca Irene, mas também desperta uma fascinação pela mulher que se tornará cada vez mais presente em sua vida.

Crítica

“Eu não sou racista. Eu não vejo cor”. Este argumento irônico costuma ser utilizado por pessoas pseudo progressistas para justificar o tratamento igualitário. Para se acabar com a discriminação, encerram-se simbolicamente as raças ou, parafraseando o Morgan Freeman de anos atrás, “quando pararmos de falar em racismo, ele desaparecerá”. Ambos os raciocínios pretendem excluir a noção de raça o que, na prática, significa excluir a noção de negritude, posto que os brancos continuam sendo brancos. Ora, pessoas negras, asiáticas, indígenas e tantas outras ocupam um espaço específico na sociedade, tendo uma cultura e um histórico particulares. A defesa de ignorar raças implica no apagamento não apenas do racismo estrutural, mas dos próprios negros, do histórico de escravidão, da desigualdade no mercado de trabalho, nas universidades, na política. Ao invés de se consertar o problema, ignora-se a vítima. Nenhuma sociedade evolui sem compreender as origens de sua relação contemporânea de forças. No caso do filme norte-americano, existe um motivo pelo qual a população negra fica restrita ao bairro do Harlem, enquanto os empresários brancos e ricos ocupam bairros "nobres". É justamente esta “ordem natural das coisas” que Rebecca Hall pretende analisar em seu primeiro longa-metragem como diretora.

A premissa, baseada no livro da escritora Nella Larsen, diz respeito à “passabilidade”. Em que medida uma pessoa negra de pele clara pode se passar por branca? Que vantagens ela teria nesta “transição”, e o que isso diria a respeito de sua negritude? O conceito de passabilidade possui ramificações em diversas comunidades minoritárias, com homens gays se passando por heterossexuais; pessoas transexuais se passam por cisgênero e assim por diante. No caso, Irene (Tessa Thompson), moradora do Harlem e coordenadora de bailes negros, reencontra por acaso a amiga de infância Clare (Ruth Negga). Hoje, esta última porta um cabelo loiro, o rosto bastante maquiado, e se considera branca. Ela se casou com um homem branco que jamais suspeitou de suas origens e, juntos, defendem ideologias racistas. “Você poderia se passar também”, ela explica a Irene, na forma de elogio. O aspecto mais interessante da estrutura do roteiro se encontra no ponto de vista: o drama acompanha a situação pelo olhar daquela que se reconhece como negra, ao invés da outra travestida de branca. Irene fica horrorizada com este comportamento, mas também fascinada pelas atitudes da amiga e pela aplicação prática dessa farsa. Ela passa a rejeitar na outra o que não consegue admitir em si própria: a vontade de pertencer ao centro, ao invés da margem. 

Ruth Negga interpreta Clare (nome que, sem ambiguidade, tem o mesmo som de “claro”, em inglês) com a extravagância das divas problemáticas do cinema clássico. De voz grave e imponente, comportamento extrovertido e uma fragilidade passivo-agressiva, lembra uma prima próxima de Blanche Dubois de Uma Rua Chamada Pecado (1951), Martha de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e Beatrice de O Preço da Solidão (1972). “Qualquer festa fica melhor com Clare”, Irene admite a contragosto. Em meio aos amigos, a negritude da convidada se converte em segredo. Isso provoca um desconforto, afinal, a raça e a etnia estão marcadas no corpo, na imagem. Esconde-se ser gay ou lésbica porque a orientação sexual não está inscrita no rosto das pessoas, mas corpos negros e trans são historicamente demarcados. A cor possui valor, possui história. Por isso, o segredo de Clare aproxima a trama do realismo fantástico - algumas pessoas nesta ficção de fato não enxergam cor, ou preferem não enxergar. É conveniente fechar os olhos à diversidade e pressupor que, exceto prova em contrário, todos os indivíduos sejam brancos, heterossexuais e cisgênero. Estes são os padrões em torno dos quais se criam as dissidências - a branquitude se converte em métrica de normalidade. Quanto mais distante do padrão branco, menor a passabilidade, e menor a admissão em meios privilegiados. 

Rebecca Hall faz escolhas firmes e controversas para ilustrar os Estados Unidos de cem anos atrás. A principal delas diz respeito ao uso do preto e branco contrastado, para acentuar as diferenças e clarear, pela fotografia, a pele de suas atrizes negras não retintas. Ora, é claro que o white face de Ruth Negga constitui uma ironia mordaz, e que o clareamento desempenha um papel crítico pelo discurso. No entanto, qualquer alteração voluntária da cor da pele perturba os sentidos dentro da ordem contemporânea de representação racial - ainda bem. Além disso, diversos dramas de temática racial optam pelo preto e branco para reduzir o mundo a estes dois tons e sublinhar a oposição entre polos. Trata-se de uma opção óbvia, literal até demais - a Netflix chega ao ponto de criar o subtítulo “Nada é preto e branco” para o cartaz dividido em duas faixas, preta e branca, onde Clare ocupa a metade clara, e Irene ocupa a metade escura. A dicotomia é acentuada de tal modo que beira o grotesco. Resta compreender de que maneira esta configuração é voluntária, ou seja, se a diretora pretende provocar o espectador pela explicitação do óbvio, ou se acredita estar propondo uma discussão inovadora e repleta de nuances. Esta seria a função política da caricatura: aprofundar traços visíveis por si mesmos, até atingir uma deformação ou monstruosidade do real. Ora, este drama deforma a raça ou o racismo?

As diferentes fascinações provocadas por Clare servem de motor narrativo ao filme que discute a percepção da negritude, mais do que a negritude em si. Brian (André Holland) sustenta um desejo erótico pela mulher; Hugh (Bill Camp) enxerga nela uma figura exótica e estrangeira; já o marido John (Alexander Skarsgard) encontra no casamento uma maneira perversa de expressar seu racismo de modo socialmente aceitável. A existência desta mulher serve para jogar luz à separação entre classes, gêneros, raças e bairros. Na compreensão dos amigos e vizinhos, ela não deveria transitar pelos espaços que ocupa enquanto mulher branca, razão pela qual transmite a aparência de perigosa, dissimulada, falsa. O fato de romper com padrões relembra, afinal, que os padrões existem: Clare é a exceção que confirma a regra, ou o pequeno elemento dissonante numa estrutura de segregação percebida como natural tanto pelo homem branco que detesta negros quanto pela protagonista negra de pele clara, que explora a empregada doméstica retinta e proíbe o tema dos linchamentos dentro de casa. Eles reproduzem padrões de comportamento herdados das gerações anteriores, até a chegada do elemento radical que escancara as fronteiras. “Ponha-se no seu lugar”, parecem dizer os olhares alheios, violentos e moralistas. 

Ao mesmo tempo, é sedutor ficar perto desta mulher para testemunhar o momento em que dará um passo em falso. A configuração racial de Clare constitui uma performance, espécie de ficção dentro da ficção, que instiga por se imaginar que, em algum momento, a atriz precisará tirar sua maquiagem e sair dos palcos. Ora, a mulher negra-branca será um espetáculo da primeira à última cena (em especial para espectadores capazes de compreender outros sentidos do verbo “to pass” em inglês). Rebecca Hall constrói uma obra amarga, com janela de imagem próxima do quadrado para isolar as pessoas do meio e sugerir a claustrofobia. Aos poucos, a profundidade de campo também se reduz, até o clímax na sacada, quando o mundo externo se transforma num borrão. A diretora procura obsessivamente as mãos de Irene, cada vez mais agressivas, além da rachadura no teto indicando um lar em vias de desmoronamento, e outros símbolos plantados com maior ou menor sutileza no percurso. Identidade incomoda profundamente, seja pelos bons ou maus motivos. Ao menos, o olhar da cineasta branca nunca condena moralmente Irene pelo comportamento agressivo, nem Clare pela decisão de se passar por branca. Critica-se uma estrutura perversa, obrigando indivíduos a buscarem soluções delirantes ou negacionistas à violência sistêmica. Neste sentido, a cena final constitui uma pérola deste olhar externo e crítico à apatia social, convertendo o forte acontecimento num misto de conto de horror e fábula natalina. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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