Crítica
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Crítica
O olhar infantil já foi bastante utilizado para oferecer um ponto de vista muito singular sobre guerras ou mesmo ditaduras. O brasileiro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e o argentino Kamchatka (2002) são dois exemplos desses filmes que abordam o tão espinhoso tema das ditaduras latino-americanas dos anos 1960/70 pela ótica de alguém que nem entende os códigos e as complexidades do mundo adulto. Além disso, em diversas vezes o filme político se comunica apenas diretamente com os “convertidos”, ou seja, com a parcela da população que tem plena consciência de como e por quais motivos chegamos a homens e mulheres torturados e desaparecidos durante levantes autoritários/fascistas. Portanto, o principal mérito de Meu Tio José é utilizar o olhar da criança como justificativa para realizar uma espécie de jornada pedagógica pelos meandros da ditadura civil-militar que desgovernou o Brasil por 21 anos. O protagonista é Adonias, jovem que vivencia sua meninice quase alheio às turbulências do país dominado pelos milicos e colocado sob cabresto depois do AI5 – ato institucional promulgado em 1968 e que cerceou ainda mais as liberdades individuais. A casa desse garoto é chacoalhada pela notícia de que seu amado tio, José Sebastião Rio de Moura, foi baleado numa farmácia. Ex-guerrilheiro da luta armada, esse homem fica entre a vida e a morte num hospital.
O cineasta Ducca Rios é realmente sobrinho de José Sebastião Rio de Moura, assassinado por motivos políticos depois de ter a sua volta ao Brasil permitida pela Lei da Anistia. Portanto, Adonias é uma espécie de alterego, embora o realizador não se atenha ferrenhamente aos fatos, os misturando com generosas doses de fabulação. De todo modo, Meu Tio José é uma história pessoal. O inocente Adonias tem muitas dúvidas sobre o que está acontecendo, principalmente porque desconhece o cenário político que motivou as ações revolucionárias de José. O visual é feito de traços e ângulos duros. Já o preto e branco que trata de tornar a paisagem ainda mais árida é estrategicamente quebrado pelo vermelho comumente associado aos progressistas de esquerda. Portanto, quando alguém está andando num carro encarnado, por exemplo, a cor explode na telona rompendo a oposição entre os claros e escuros. O efeito é até interessante na primeira das vezes em que essa quebra acontece, mas em todas as demais não chega a ter muita efetividade como dispositivo dramático. Mais interessantes nesse sentido são os pensamentos apresentados com uma técnica diferente de animação, na qual os contornos e as formas são mais caóticas. É como se a realidade estivesse rigidamente pautada pela lógica dura/rija da linha reta, enquanto os instantes menos concretos são propícios aos voos da imaginação.
Ducca Rios constrói um percurso bastante didático para apresentar ao público as subjetividades de José Sebastião Rio de Moura. Cada pessoa consultada pelo curioso Adonias adiciona peças no quebra-cabeças que vai revelando como imagem o homem. Angustiadas pela situação crítica de José no hospital, a avó e a mãe falam dele na infância e traçam um itinerário rumo à chegada ao Rio de Janeiro e aos primeiros contatos com a realidade que moldaria a sua consciência sociopolítica. Já o pai adota um tom mais professoral para apresentar ao pequeno o contexto dos anos de chumbo, falando de sequestros a embaixadores, explicando para que serve a luta armada e respondendo às dúvidas da criança com um zelo de educador. Meu Tio José utiliza a profissão dos pais de Adonias (ambos professores) para assumir esse tom pedagógico que se presta a uma formação. É como se o roteiro estivesse mais preocupado em ensinar aos espectadores (aqui representados pelo menino que antes ignorava aquilo) sobre a que ponto de crueldade os militares brasileiros chegaram quando estavam no poder. Por um lado, é bem-vinda essa vontade de falar para quem não está familiarizado com datas, fatos, ideologias e termos. Mas, por outro, o realizador fica empenhado em demasia na construção de um imaginário infantil sobre a ditadura, porém pouco trazendo à tona as ferramentas da própria criança.
Meu Tio José poderia ser o fruto da elaboração de Adonias sobre o tema e as circunstâncias após o recebimento de tantas informações. No entanto, Ducca Rios prefere fazer dele simplesmente um personagem que representa o espectador, aquele que é convidado a acumular informações e elucidações para que não restem as dúvidas pelo caminho. Um componente interessante é a reprodução do militarismo no ambiente escolar, vide a diretora e o inspetor autoritários, o colega brutamontes que repete o discurso anticomunista do pai milico, mas no qual também existe uma professora de atitude progressista. Em meio a isso, o cineasta corre o risco de criar uma espécie de hereditariedade determinista, ou seja, com os filhos de fascistas sendo necessariamente fascistas e filhos de progressistas seguindo imediatamente a inclinação ideológica mais inclusiva e humanista dos pais. Claro que estamos falando de crianças que, como tal, são suscetíveis à reprodução imediata do que pais fazem/falam. Isso atenua a ressalva nesse sentido. No entanto o longa-metragem perde pontos preciosos como experiência por ficar basicamente atrelando tudo às descobertas de Adonias, sem que esse trajeto ganhe tantas variações. Ele vai à escola, tem dificuldades, volta para a casa em vigília, sempre tem alguém disposto a esclarece-lo e, com isso, adicionar outra pecinha na história de vida do tio-herói. O filme toca sensivelmente na ferida ainda aberta, mas vacila por ser um pouco esquemático.
Filme visto durante o 23º Festival do Rio, em dezembro de 2021.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 6 |
Leonardo Ribeiro | 6 |
Renato Silveira | 6 |
Miguel Barbieri | 8 |
MÉDIA | 6.5 |
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