Crítica


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Sinopse

Na véspera de Natal, Maia recebe uma caixa com itens confiados à melhor amiga quando deixou o Líbano. Ela se recusa terminantemente a abrir essa Caixa de Pandora, mas sua filha adolescente, Alex, não consegue resistir à tentação e começa uma viagem pelo passado da mãe.

Crítica

A “caixa de memórias” do título constitui um organismo vivo, em vários sentidos do termo. Primeiro, porque o objeto contém as fotos, fitas e cartas enviados por Maia (Rim Turki) à melhor amiga quando era adolescente e ainda morava no Líbano. Segundo, porque o objeto indesejado, guardado no porão, abre-se sozinho, despejando o conteúdo pelo chão até ser descoberto. Estamos próximos de um cinema de fantasia, mas também de uma singela metáfora psicanalítica para o retorno do recalcado. Esta família formada exclusivamente por mulheres (avó, mãe e filha adolescente) não consegue mais esconder os segredos do passado, que uma hora batem à porta (quase literalmente) e se despejam sobre elas. A narrativa se abre com a paz aparente – a festa de Natal em família, no Canadá – para resgatar o caos da guerra no país de origem, e então buscar uma maneira de fazer as pazes definitivamente com as cicatrizes do exílio. A viagem pela memória afetiva ultrapassa a esfera das lembranças, baseando-se também em datas, gravações, fotos e reconstituições. Os diretores Joana Hadjithomas e Khalil Joreige se preocupam tanto com sentimentos quanto com fatos.

Por um lado, o drama toca em algumas questões interessantes a respeito do embate entre gerações. A filha Alex (Paloma Vauthier), que revira a caixa por conta própria, corresponde à geração virtual, sempre grudada ao telefone celular, fotografando as fotos impressas da mãe e enviando a foto-da-foto ao grupo de amigos no WhatsApp. A garota é representada unicamente pela galeria de imagens de seu dispositivo móvel, pelas trocas de mensagens curtas e instantâneas dos smartphones. Já a mãe corresponde à era analógica, tendo escrito diários, efetuado colagens com fotos das amigas e dos namorados da juventude, e registrado em fitas cassete tanto trechos de música quanto confissões. Alex mergulha não apenas na história recente do Líbano, mas também nas diferentes relações que possuímos com as imagens e as recordações, entre o catálogo de preciosidades íntimas e as banalidades instantâneas das redes sociais. Ela se situa, portanto, entre o efêmero e o perene. O roteiro jamais se aprofunda em qualquer forma de crítica ou análise destas formas distintas de linguagem, nem no peso que acarretam às respectivas gerações. No entanto, permite confrontar diferentes maneiras de ver e registrar o mundo.

Por outro lado, a metáfora desta Caixa de Pandora se revela literal demais. O filme se inicia com a chegada do objeto, e jamais desperta qualquer conflito dissociado dele. Os criadores evitam fornecer à adolescente algum interesse próprio, um desejo para o futuro, dilema ou anseio. A mãe e a avó, em paralelo, conversam única e exclusivamente a respeito das lembranças suscitadas pelo conteúdo da caixa. Enquanto a narração de Maia jovem, numa fita cassete, evoca o prazer das comidas, a filha encontra no diário fotos de tipos de macarrão. Quando menciona bitucas de cigarro, deparamo-nos com a colagem sobre bitucas de cigarro. A voz evoca a tristeza do pai após uma tragédia, e então o vemos sentado no sofá, chorando. Diante das múltiplas possibilidades de provocar atritos entre som e imagem, ou fazer com que ambos se completem, os diretores preferem que banda sonora e banda imagética se repitam. Memory Box constitui um filme excessivamente descritivo, referencial e linear. O resgate da memória afetiva permitiria lembranças exageradas, fragmentadas ou distantes da realidade. O tema possibilitaria um sem-número e metáforas e poesias. Hadjithomas e Joreige inserem algumas manipulações digitais, incluindo efeitos de bombas em fotografias e coincidindo as explosões com a deterioração da película. O efeito é simpático e pop, porém incapaz de aprofundar a representações dos sentimentos – de fato, a segunda metade do drama abandona por completo estes efeitos teen.

Em consequência, o extenso flashback da juventude de Maia monopoliza o projeto. A excelente Manal Issa (de Destemida, 2015, e Meu Tecido Preferido, 2018) se vê limitada uma reconstituição dos fatos, reagindo a fragmentos de conflitos evocados pela narração onipresente. Esta personagem nunca adquire autonomia, sendo condicionada às cenas exemplares (momentos de profunda felicidade, como o parque de atrações, ou de profunda tristeza, como o testemunho do luto dos pais). A certa altura, o filme sugere que a casa onde a personagem viveu poderia constituir, por si própria, uma caixa de memórias. Infelizmente, a simbologia não vai muito longe. Quando o roteiro se dedica às longas sequências no Líbano, ele simplesmente se esquece de Alex, nossa condutora da trama até então – prova de que a garota servia, aos olhos da direção, somente para se intrometer na vida da mãe e revelar ao espectador os segredos do passado. A premissa possui ótimas intenções, buscando retratar as feridas de um país pela trajetória de alguns de seus indivíduos. Assim, o nacional se torna individual, e o público se mistura ao privado. No entanto, a fraca estrutura impede que os personagens, fatos e lembranças existam para além das insistentes idas e vindas no tempo. Os personagens inexistem no dia a dia: eles nascem quando os cineastas gritam “ação!”, e encerram suas funções quando a tampa da caixa é coberta.

Devido às modestas ambições de linguagem, Caixa de Memórias resulta numa abordagem cinematográfica tímida. A direção de fotografia trabalha com um scope tão elegante quanto impessoal, seguindo personagens em modo automático. A direção de som encerra os personagens numa bolha a vácuo: os ruídos e confronto entre vozes são raros até durante cenas externas. Quando Maia enfim consente em relatar a sua versão dos fatos, a fala empostada retira qualquer espontaneidade ou sinceridade da confissão. Mesmo a representação ausente de Liza se enfraquece: a amiga, apresentada enquanto elo fundamental à compreensão do passado da mãe, é esquecida pelo roteiro, que prefere se concentrar no namorado Raja. Os elementos estão desequilibrados no que diz respeito ao roteiro, e apáticos quanto à potência das imagens. Por isso, não se espanta que a evocação singela da guerra tenha pouco a esclarecer sobre conflito em particular, ou as cicatrizes que deixou, resumindo-se à lamentação de sua existência. O final feliz soa artificial devido às aparições improváveis, reforçadas pelo pôr do sol enquanto sinal óbvio de renascimento e crença no futuro. O projeto se encerra numa abordagem tão carinhosa quanto ingênua.

Filme visto online no 71º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em março de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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