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Sinopse

Na favela de Sol Nascente, na Ceilândia (DF), a principal moeda de troca entre grupos inimigos é o petróleo. Chitara, grande gasolineira da região, tenta fidelizar a clientela junto ao seu poço particular, com a ajuda da irmã. Quando o Brasil se torna mais conservador e ameaça votar na extrema-direita, o posicionamento de Chitara se transforma num ato político.

Crítica

O Brasil de Mato Seco em Chamas (2022) é um país futurista, mas também aquele de atualmente. Por um lado, foi descoberto petróleo abaixo da favela Sol Nascente, na Ceilândia (DF), possibilitando a cada morador ter seu poço particular para extrair e refinar combustível (ou comprar mais barato pela vizinhança). Por outro lado, este é um país que defende “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”, resgata saudações nazistas e organiza grandes manifestações populares pelo impeachment de Dilma Rousseff, enquanto faz o sinal da arminha para posar às fotos. Nas comunidades, pessoas negras e pobres lutam por alguma forma de representação política, através do Partido do Povo Preso. Nos desfiles pró-Bolsonaro, tolerados pela polícia, pessoas brancas, loiras e de classe média-alta defendem a manutenção de privilégios que estimam ser direitos. O roteiro está perto e distante da nossa realidade: ao invés de um sonho delirante, ele ilustra uma nação em ressaca, onde os principais fatos estão presentes, porém distorcidos, exagerados ou fora de ordem. Por isso, as paisagens pretas, beges e cinzas que dominam a narrativa (como fazem falta as demais cores no horizonte!) adquirem ao mesmo tempo a aparência de distopia e de um cinema documental.

O diretor Adirley Queirós, junto a Joana Pimenta, promove novamente uma combinação frutífera entre a ficção e o documentário, partindo de personagens reais interpretando versões levemente alteradas de si próprios. A abertura pende à narrativa roteirizada, através de um grupo de motociclistas buscando seu produto junto à gasolineira Chitara (Joana Darc). Em seguida, no entanto, Léa (Léa Alves) conversa diretamente com a câmera, e aparenta revelar sua história real de encarceramento e liberdade. Os dois polos seguem em paralelo: enquanto a ficção aprofunda o dilema do combustível e das eleições distritais, desenha-se ao espectador a trinca de irmãos formada por Chitara, Léa e Cocão, afastados por problemas com a justiça e por dificuldades financeiras. Os diálogos preservam uma espontaneidade preciosa: em plano-sequência, as mulheres conversam com a liberdade de quem ignora a equipe cinematográfica à sua frente. As gírias se multiplicam conforme evocam as namoradas, as lembranças do pai falecido, as festas que frequentaram. O trabalho com não-atores costuma ser pautado por certa rigidez nas falas e no corpo, porém a dupla de cineastas (a exemplo de Affonso Uchôa, João Dumans e André Novais) deixa seus personagens confortáveis o bastante para se expressarem com frescor e espontaneidade, longe das entrevistas sisudas do documentário acadêmico. Há um refinamento precioso de mise en scène.

Em contrapartida, o resultado seria beneficiado por uma montagem mais enxuta. O problema não se encontra na duração longa em si, mas nas sequências extensas no interior da trama, que desviam a atenção do conflito central para adentrarem uma espécie de transe próprio. O fragmento com Andréia (Andréia Vieira) na igreja evangélica, escutando as canções dos pastores, se estende demais: canções inteiras são entoadas umas após as outras, o que levou diversos críticos de cinema estrangeiros a se levantarem e abandonarem a sessão de imprensa durante a Berlinale. As sequências de dança no ônibus, ou de apresentação da banda Moleka 100 Calcinha (cujo verso dá nome ao filme) também se esticam. O estilo contemplativo se justificaria numa obra inteiramente voltada às sensações, a uma ruptura do real — ou seja, caso constituíssem o meio e a finalidade da direção. Ora, parece haver uma narrativa convencional por trás desta linguagem etérea, que se distrai em parênteses autônomos, fora do conflito central. Mato Seco em Chamas não se torna nem experimental, no sentido estrito do termo, nem linear e referencial como pretendiam ser as alusões diretas à Bolsonaro. É possível que a dupla tenha pretendido navegar entre estes dois polos, porém se priva de aprofundamento em um deles. Por isso, chegando ao terço final, o longa-metragem desiste de sua ficção gasolineira: a montagem abraça então apenas o documentário, focando-se nos bastidores da produção à qual assistíamos até então. “Quando eu entrei para o filme, fiquei torcendo para ela poder entrar também”, confessa Chitara, ao que Léa comemora: “Vamos ser atrizes!”.

Ao final, o projeto resulta numa representação potente do Brasil contemporâneo, embora seja, em termos conceituais, um tento dispersa em suas escolhas criativas. Adirley Queirós retoma símbolos utilizados à exaustão nos seus filmes: os carros em chamas no terreno baldio, que inclusive serviu de cartaz a Branco Sai, Preto Fica (2014), e os camburões ou traquitanas tecnológicas, a partir de um desenho fantasista de baixo orçamento, herdeiros de Era uma Vez Brasília (2017). Aqui, a autoria pertence tanto a ele e a Joana Pimenta quanto à montadora Cristina Amaral, grande nome do cinema brasileiro marginal e autoral, capaz de conferir ao conjunto uma aparência particular. Ela abraça as arestas, os excessos. Talvez outros montadores e produtores tivessem apelado a um “polimento” das sequências, além de uma diluição fluida entre ficção e documentário, rompendo com o rígido bloco fatual da conclusão. Em contrapartida, os criadores se aventuram por uma leve variação do estilo que vinham praticando. O resultado, portanto, surpreende e não surpreende: trata-se de uma continuação quase óbvia do trabalho do cineasta, porém numa embalagem mais ambiciosa, inchada e propensa a devaneios, para o bem ou para o mal. Já as menções diretas ao Brasil de Bolsonaro soam amargas, pois ainda nos encontramos neste período. Como elaborar uma reflexão distanciada sobre um período em andamento? Como levar à terapia o pesadelo do qual ainda não acordamos? O cinema efetua aquilo que lhe compete: converte estes estímulos em afronta, em terror, em fantasia, em futurismo, em distopia. Conforme as fábulas de Queirós (junto a Pimenta, neste caso) passeiam e se perdem pela Ceilândia, elas fincam os dois pés na Brasília política e institucional.

Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2022.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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