Crítica


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Sinopse

A erva-mate é proibida num Uruguai futurista. Tentando manter a identidade de um povo, dois vendedores que vivem na ilegalidade parte ao Paraguai em busca de subsídios para salvar o consumo da erva.

Crítica

É curioso como o Uruguai é capaz de uma percepção tão uniforme em qualquer um que o observe a certa distância. O país apresentado em Mateína: A Erva Perdida é retratado através da melancolia de um povo envelhecido, saudoso por tempos melhores que ficaram para trás, marcado pela falta de perspectiva por um futuro auspicioso e, no caso da ficção proposta, privado até mesmo de um dos seus poucos – e mais constantes – alentos. Sim, pois a história contada por Pablo Abdala e Joaquin Peñagaricano se passa no ano de 2045, quando a maior mudança é a proibição do consumo de mateína – ou seja, do mate tão característico aos moradores locais – como resultado de uma política ainda mais severa contra o consumo de entorpecentes potencialmente alucinógenos empreendida pelos Estados Unidos em sua região geográfica de influência. A curiosidade, porém, é meramente circunstancial. Afinal, os realizadores se mostram menos interessados em investigar as consequências práticas dessa mudança de comportamento, pois dispostos a analisar o espírito resiliente do país que entende como perdurar mesmo diante das maiores adversidades. Ainda que essas sejam não mais do que a ausência de uma cuia de chimarrão.

Moncho (Diego Licio, de La noche que no se repite, 2018) e Fico (Federico Silveira, de Flacas Vacas, 2012) são amigos que levam suas vidas de modo despreocupado, num compasso de espera por uma oportunidade que nunca chega. A não ser, é claro, que deixem essa posição de passividade e assumam as rédeas de uma possível transformação. Apesar da mateína estar proibida há cerca de uma década, é chegado o ponto que não mais conseguem levar sem se abalarem por tal restrição. Munidos pelos últimos resquícios da erva alçada além do proveito recreacionista a uma posição de identidade nacional, decidem, enfim, fazer algo por eles – e por todos os demais que, assim como os dois, também anseiam por ventos de mudança. Essa Pasárgada onde tudo parece ser possível é identificada como o Paraguai, o que não deixa também de soar como um comentário irônico em relação a um lugar conhecido entre os seus vizinhos por suas falsificações e proveito descartável. Até lá, há outros destinos possíveis, como a Argentina e o próprio Brasil, ambos, aparentemente, com mais contras do que prós. Aos uruguaios, portanto, lhes cabe assumir essa condição de esquecidos pelo mundo, pois é quando não há mais para onde ir que qualquer caminho pode levar a um ganho inesperado.

De tamanho comparável ao do Rio Grande do Sul, ao Uruguai é relegado uma descrição uniforme, de população envelhecida e desprovida de esperanças – ao contrário do estado brasileiro fronteiriço, diverso em suas origens e influências. Se os uruguaios são vistos sob um prisma de uniformidade, não espanta também verificar dois tipos tão singulares sendo alçados a uma improvável condição de heróis ao acaso. Ao mesmo tempo em que são perseguidos pelo homem da lei, o único que parece se importar com o cumprimento de uma regra imposta por ordens distantes e que pouco interesse tem em compreender aqueles afetados por tais diretrizes, os demais com quem acabam cruzando durante a jornada imposta servem tanto como incentivo quanto apoio, mostrando-se cruciais na formação de uma consciência coletiva. Não se trata de um indivíduo ou outro, mas de uma nação comprometida em retomar sua essência.

O Uruguai visto em Mateína: A Erva Perdida é mais exterior do que interno, mais rural do que urbano, mais real do que inventado. Essa opção é um acerto frente às limitações da produção – evidentemente, trata-se de um projeto independente feito na base da criatividade e movido pela vontade de realizar algo dono de um discurso digno de atenção. Por outro lado, contrasta com as expectativas geradas pelo envolvimento com um gênero propício à fantasia e ao devaneio. As estradas desertas, os moradores envolvidos pelo tédio daqueles que nada tem a fazer e a monotonia de dias que se assemelham entre si poderiam apontar para uma drástica alteração a partir desse movimento de protesto, mas engana-se quem apostar em reviravoltas de última hora: o objetivo está mais em investigar as possibilidades abertas por um incômodo nacional e menos em registrar feitos heroicos e posições de duplo sentido. O que está posto irá permanecer, ao menos até que a ordem das coisas se reorganize para que tudo permaneça como sempre foi.

Há um olhar agridoce a respeito de si e dos seus permeando cada feito coordenado pelos protagonistas de Mateína: A Erva Perdida. A quebra de clichês e o driblar de soluções facilitadoras – a dupla que se complementa, a inserção de um interesse romântico, o sacrifício de um abnegado – são acertos que incrementam um enredo desprovido de grandes resoluções, indo de encontro com o que se imagina uma vez que é estabelecido o cenário em questão. Não mais do que um ponto de partida, a proibição da erva-mate é tão pontual quanto uma eventual retomada, pois denota quão superficiais são certas políticas e o quanto o povo se vê a mercê dessas arbitrariedades, a menos que decida assumir para si a tomada de tais decisões – a exemplo dos personagens aqui em evidência. O comentário crítico nunca é impositivo ou panfletário – pelo contrário, convence e envolve justamente pelo inesperado e pelo carisma dos que nada tem a perder, e por isso, se veem dispostos ao tanto que lhes é ofertado. Um filme de poucos feitos, mas grandes significados.

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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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