Sinopse
Mário retorna ao sertão, depois de 15 anos, para enterrar o pai. Ele regressa para sua cidade natal, como Marie, uma mulher trans. Lá reencontra seu melhor amigo de infância, Estevão, e com ele, seu passado. Com a ajuda de Estevão, Marie parte numa viagem para enterrar o pai na cidade do Crato.
Crítica
Um corpo está inerte, pois perdeu recentemente a vida, com isso alterando o cenário imediatamente ao seu redor, enchendo-o de pesar e lamúrias. O outro, o de sua filha Marie (Wallie Ruy), regressa de luto à terra natal, trans(formado), carregando a nostalgia das velhas histórias que irrompem das frestas deixadas pela dor da perda do ente querido. Marie, curta-metragem escrito e dirigido por Léo Tabosa, fala com sensibilidade do acesso às rememorações a partir de novas realidades, estas oferecidas pela morte e pelo renascimento numa reconfiguração física. A protagonista deixa espaço às memórias virem à tona diante da casca vazia que em breve deve ser sepultada. Alcina (Divina Valéria) se refere a ela como ele, ignorando o visual, guiando-se por vivências passadas, quando Mário era o favorito do amigo sem vida e estirado na cama sem direito ao ar.
É bonito esse momento em que a câmera, impávida, observa o cadáver de ponta cabeça e as duas mulheres, não por acaso ambas transexuais na realidade, conversam sobre o antes compartilhado, os pesares levemente arrefecidos em virtude do passamento do sujeito que interliga suas vivências e tudo que as aflige naquele átimo. Esse outrora escarafunchado como forma de introduzir um novo presente e, quem sabe um futuro menos desgastado por senões, ganha contornos distintos com a entrada em cena de Estevão (Rômulo Braga), melhor amigo de Marie quando ela ainda se deixava chamar de Mário. Nos seus diálogos iniciais já ficam evidentes as ressalvas adiante verbalizadas num instante de desabafo que expõe mágoas de longa data não cicatrizadas, sequer, com as duas décadas de distanciamento. Logo o filme vira um rápido road movie.
Talvez o maior problema de Marie seja a opção pelo formato curta-metragem. Embora tenha mais de vinte minutos, sua extensão é insuficiente para dar conta de tudo que o roteiro suscita nas dimensões deflagradas, sobretudo nas breves, porém intensas, interações entre Marie e Estevão. Não que ao filme falte objetividade, mas fica a vontade de conhecer mais a respeito desse ontem compartilhado, de perceber até onde essas figuras podem se reconciliar a fim de perseguir a instância que dá nome a uma das praias mais famosas do Nordeste brasileiro. A belíssima fotografia a cargo de Petrus Cariry reforça a sensação de elo fundamental com a paisagem, algo que igualmente poderia ser mais bem desenvolvido com outro tempo à disposição. Todavia, ainda assim a narrativa oferece subsídios suficientes à instauração de situações bastante instigantes e belas.
Um dos grandes méritos de Marie é o trabalho esmerado e delicado do elenco. Especialmente Rômulo Braga, um dos melhores intérpretes de sua geração, dá um toque de profundidade e complexidade às lembranças que vêm à tona novamente a partir da perspectiva distinta e da situação insólita de levar o morto. A necessidade de provocar o afeto familiar, a coragem de desgarra-se para conduzir o próprio destino, são questões que concernem à Marie, mulher transexual que fala com um misto de sensações acerca da tacanhez da terra de origem em comparação ao cinismo dos grandes centros. Já Estevão aparentemente sofre por não ter tido o ímpeto da amiga, o de afastar-se dos seus a fim de alcançar uma plena emancipação. Dois personagens pretensamente díspares que, no fim das contas, transitam por terrenos semelhantes de inquietação.
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