Crítica


6

Leitores


7 votos 9.4

Onde Assistir

Sinopse

Luca está numa bela cidade litorânea na Riviera italiana. Ele compartilha suas aventuras com um novo melhor amigo, mas essa felicidade é ameaçada por um segredo bem guardado: eles são monstros marinhos de outro mundo.

Crítica

Desde a aquisição da Pixar pela Disney, os estúdios passaram a produzir animações de estilos muito diferentes: uma parte corresponde aos projetos autorais, ousados em termos narrativos e estéticos, discutindo questões como a morte, a memória, a psicologia, a existência da alma (caso de Divertida Mente, 2015, e Soul, 2020). Já a segunda parte representa as obras de sustentação, de ambições modestas, visando reforçar a popularidade de franquias (Universidade Monstros, 2013, Procurando Dory, 2016) e gerar renda pela venda de produtos derivados (bonecos, camisetas, mochilas). Estes últimos buscam a adesão de um público familiar e habituado às tramas clássicas, já os anteriores procuram o reconhecimento em premiações e a manutenção do status dentro da indústria. Nesta dicotomia, Luca (2021) corresponde às iniciativas mais singelas. Esqueça os mergulhos na mente humana e as propostas de abstração: o diretor Enrico Casarosa oferece uma história básica, linear, onde os mocinhos permanecem vítimas do início ao fim, os vilões são malvados desde a primeira cena, e as mensagens se expressam com a clareza de um panfleto. A exemplo das animações mais apreciadas 20 ou 30 anos atrás, a obra se valoriza pela importância atribuída ao tema.

Em termos técnicos e estéticos, a produtora mantém o mínimo esmero esperado do maior estúdio de animação do mundo. Situada entre o fundo do mar e o litoral da Itália, o filme preserva a coesão pelo uso repetido das cores lilás, verde e rosa, favorecendo o ambiente fantástico. Embora se passe principalmente no mundo dos humanos, a história se afasta do realismo, apostando seja no romantismo de um lugar distante (uma Itália sempre ensolarada, onde as pessoas comem massa, queijo e andam de Vespas por todos os lados), seja num universo mágico (o fundo do mar com poucos detalhes, onde o protagonista exerce o trabalho de “pastor de peixes”). A concepção de uma criatura aquática que se transforma em homem quando sai do mar, e depois volta ao estado animal sob as águas, remete a projetos anteriores da Disney: A Pequena Sereia (1989), com a personagem aquática igualmente seduzida pelos prazeres da vida humana; Frozen: Uma Aventura Congelante (2013), no qual o superpoder da protagonista a torna monstruosa; e Procurando Nemo (2003), onde os pais de um ser aquático arriscam a vida no resgate do filho rebelde. Estes princípios são reciclados em 2021 sem diferenças marcantes, ainda que embalados na ternura habitual dos dramas da Pixar – somos levados a compreender tanto o desejo de aventura do filho quanto a preocupação dos pais.

Atenção: possíveis spoilers a seguir!

Em contrapartida, a jornada se desenvolve sem grande empolgação. Exceto por alguns sonhos pontuais do jovem Luca voando pelos céus, as poesias visuais são praticamente inexistentes. As cenas de ação se revelam discretíssimas (resumidas à descida de bicicleta por uma ladeira íngreme), enquanto os instantes dramáticos se fazem ínfimos para o estúdio que criou Up: Altas Aventuras (2009), Wall-E (2008) e a relação paterna comovente de Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica (2020). Mesmo o humor aparece em pequenas doses, apesar da presença confiável de Maya Rudolph no elenco. Em outras palavras, o filme evita o espetáculo, as reviravoltas inesperadas, as explosões de alegria ou tristeza. Diante de tantas comédias, suspenses e fantasias, este roteiro poderia ser descrito como um drama tradicional. Luca deseja usufruir da condição temporária de humano, à medida que questiona suas origens. Ele será testado por seus desejos, passando a valorizar tanto as amizades quanto a proteção familiar. O aprendizado se torna tão claro quanto previsível.

A leitura mais interessante de Luca decorre da aceitação das diferenças. Por ser um animal marinho, o garoto é considerado automaticamente um “monstro”, uma criatura a ser exterminada. Ele tenta se passar por um humano comum, até aceitar sua condição e estimular a aceitação dos demais. Pode-se enxergar nesta fábula uma alegoria da tolerância aos deficientes físicos (um dos personagens não possui um braço), aos negros/latinos, e sobretudo aos homossexuais. Referências diretas à homoafetividade passam longe da trama, no entanto a amizade entre Luca e Alberto, outro “humano que esconde sua condição de peixe” sugere a ideia de um primeiro amor entre dois garotos. O ciúme em relação à nova amiga, o desinteresse de ambos pela menina e a sequência do trem favorecem a ideia da paixão juvenil de um menino descobrindo sua orientação sexual. De qualquer modo, o discurso é aberto o suficiente para abarcar qualquer forma de aceitação às minorias: Luca logo descobrirá que sua “monstruosidade” constitui aquilo que o faz especial, único, insubstituível. Por fim, a percepção de outros monstros marinhos escondidos entre os habitantes locais reforça a leitura da orientação sexual: a etnia, raça e gênero seriam visíveis nos corpos socialmente demarcados, enquanto a afetividade pode ser escondida para tentar se inserir nas normas sociais – provocando medo e angústia, conforme demonstrado pelo percurso do herói. “Algumas pessoas jamais serão capazes de aceitá-lo. Mas outras aceitarão”, compreende a mãe a respeito da “singularidade” de seu filho.

É uma pena que o respeito às diferenças seja condicionado à meritocracia e à conversão pelo amor. Luca conquista a admiração dos conterrâneos após disputar uma corrida de velocidade, descrita em poucos detalhes pelo filme. Ora, caso fosse desprovido de talentos, seria menos merecedor de carinho? Já a superação de preconceitos duradouros ocorre num passe de mágica, dando espaço a uma grande festa onde todos se abraçam. A mensagem se torna tão gentil quanto inocente: nossos tempos exigem uma discussão sobre como superar os preconceitos, não a mera constatação de que precisam ser superados. Quanto mais fáceis e abruptos são os finais felizes, menos dialogam com nossa realidade. O bom-mocismo de pregar o amor ao próximo proporciona um discurso inofensivo, no sentido de contentar minimamente as múltiplas vertentes ideológicas sem incomodar ninguém. Trata-se de uma meia-aceitação, um discurso moral ao invés de político. A animação oferece um prazer à moda antiga – para o bem ou para o mal, assemelha-se a um filme da Disney dos anos 1990. Nesta época, a romantização turística de países estrangeiros parecia elogiosa; a maldade simplista dos vilões soava apropriada; e as lições de amor ao próximo constituíam o máximo valor procurado numa animação familiar. Pelo menos, a Pixar embala esta refeição modesta num ritmo agradável, além de uma aparência profissional e polida.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *