Crítica


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Sinopse

Bela e Jota são dois portugueses que lutam diariamente para sobreviver nos subúrbios de Londres. Depois de um mal-entendido escolar com sua filha surda, eles são encarados pelo serviço social britânico com desconfiança.

Crítica

O acúmulo de misérias na vida dos protagonistas faz temer que Listen (2020) constitua um melodrama explorador, acreditando que, quanto pior para os personagens de ficção, melhor para o público em termos de sentimentos e entrega dos atores. Afinal, a trama gira em torno de um casal de portugueses vivendo em Londres. Em graves dificuldades financeiras, precisam roubar produtos do mercado para comer. A filha do meio é surda, mas não podem custear um aparelho de audição. Além disso, a menina aparece cheia de hematomas no corpo inexplicavelmente. O irmão mais velho está doente, e o mais novo é um bebê recém-nascido, precisando de atenção constante. Está armado o coquetel para uma relação de piedade em relação aos adultos gentis, esforçados, que apenas desejam o melhor para as crianças apesar das adversidades. A situação se complica quando, devido às marcas nas costas da garotinha, os serviços sociais são acionados, fazendo com que Bela (Lúcia Moniz) e Jota (Ruben Braga) percam a guarda dos pequenos. As tragédias continuam a partir daí - este é apenas o início da jornada.

A diretora Ana Rocha de Sousa aposta em motores consagrados do melodrama: o subgênero da mãe coragem, disposta a qualquer ato de bravura para recuperar suas crianças; a premissa do “um contra todos”, quando uma figura minoritária precisa provar sua razão contra a voz de um sistema maior poderoso; e o confronto de David versus Golias, no qual os primeiros representam imigrantes pobres contra uma estrutura de justiça rica e poderosa. Ela ainda aposta no caráter apoteótico os dramas de tribunal, encerrados com poderosos discursos emotivos diante do juiz, calando todos os redor (incluindo a oposição); e no sofrimento dos adultos que são considerados maus pais devido à pobreza - a professora da garotinha surda sublinha o menosprezo pelos adultos que sequem adquirem o aparelho de surdez, sem cogitar que, talvez, não tenham condição de comprá-lo. “Mas você pode parcelar”, alegam algumas vozes pouco empáticas aos problemas alheios. Caso estivéssemos em Hollywood, este roteiro produziria algo como Lado a Lado (1998), À Procura da Felicidade (2006) e A Troca (2008), do tipo que impressiona críticos pelo poder das atuações e cativa o público pela forte recompensa emocional.

Ora, o drama britânico-português consegue inserir esta trajetória tão familiar, em todos os sentidos do termo, dentro da estrutura de produção independente - prova de que os mesmos conceitos e ferramentas narrativas podem gerar resultados completamente diferentes, dependendo da estrutura criativa onde se inserem. Os autores conseguem manter o explosivo teor melodramático dentro de um escopo razoavelmente contido e distanciado. A luta de Bela e Jota permanece alheia aos olhares públicos, sendo compartilhada apenas com as partes envolvidas e o espectador cúmplice. Em oposição a inúmeras histórias descritas pelo prisma de casos excepcionais, capazes de marcar uma geração, esta faz questão de frisar que situações semelhantes ocorrem o tempo inteiro, motivo pelo qual a disputa legal da dupla de portugueses passa despercebida pelos holofotes da mídia. Partindo de mera questão moral (a força de vontade dos pais, a necessidade de provar sua integridade e a extensão do amor às crianças), desenha-se uma obra de ambições políticas mais amplas. Critica-se a rigidez do sistema penal, o desejo punitivista contra imigrantes e a xenofobia implícita neste gesto. 

Lúcia Moniz e Ruben Braga apresentam excelentes trabalhos de composição, em registros complementares. Ela oscila entre a depressão e a raiva, transformando o imigrante numa figura de luta, ao invés de autopiedade. A atriz, que já havia impressionado em Fátima: A História de um Milagre (2020), maneja com facilidade os diálogos em português e inglês, tanto na chave corriqueira do cotidiano quanto em postura formal, diante de advogados. Já Ruben Braga concebe um pai melancólico, de olhos repletos de lágrimas que nunca caem. Ele oferece uma resistência silenciosa, do tipo que ainda agradece os algozes por não lhe terem feito algo ainda pior. O homem ilustra o respeito submisso ao país acolhedor, numa postura que irrita a esposa e desperta boas discussões a respeito do dever de “agradecimento" à nova pátria, como se lhe tivessem feito um favor ao acolher o núcleo familiar naquela periferia isolada e paupérrima. Face aos dois, as crianças são contidas - melhor escolha, para privar a narrativa de um rio de lágrimas - e os agentes do serviço social transmitem a aparência burocrata e ignorante, isentando-se de responsabilidades. “Nós apenas cumprimos ordens”, parecem dizer a cada troca verbal.

Esteticamente, Ana Rocha de Sousa deixa a câmera distante dos confrontos, seja no cômodo ao lado, ou no fim do corredor. Sempre que possível, esconde o dilema no espaço extra-quadro, sugerindo-o pelo som. Enquanto isso, a fotografia de Hatti Beanland trabalha a luz entrando pelas janelas da casa e iluminando os papéis de parede estampados, valorizando a tristeza da família sem exagerá-la. A montagem torna o ritmo fluido, dentro da duração incrivelmente sucinta de 73 minutos. Listen desperta a impressão de ter abraçado um material incendiário, com o desafio autoimposto de reduzir seu caráter espetacular e mantê-lo dentro de uma esfera íntima, psicológica. As reviravoltas do roteiro apontam à construção popular(esca), no entanto, a mise en scène se carrega de uma contenção e elegância dignos das obras de Ken Loach ou Mike Leigh. Por esse encontro raro de sensibilidades, oferece uma obra capaz de se destacar em grandes festivais de cinema - o resultado recebeu dois prêmios no Festival de Veneza - e dialogar sem dificuldades com o público amplo. Há uma qualidade notável nos projetos capazes de preencher a lacuna entre o cinema hermético e aquele de complexidade limitada, pensado enquanto mero escapismo. 

Filme visto online na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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