Crítica


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Sinopse

Lúcia é uma pastora que aos 10 anos de idade, em 1917, tem uma visão da Virgem Maria na companhia de seus dois primos mais novos, Jacinta e Francisco. Suas revelações tornaram a cidade portuguesa de Fátima um local de peregrinação. Isso desagradou a Igreja e o Governo de Portugal, que tentaram forçá-los a recontar a sua história. 

Crítica

Apesar do título oficial, este filme também poderia se chamar “A História de uma Maldição”. A partir do momento em que Lúcia, garota de dez anos de idade, tem uma visão com a Virgem Maria, sua vida se transforma num calvário. Ela é taxada de mentirosa, acusada de debochar da Igreja e buscar atenção a si própria. Seus pais são insultados na rua, ameaçados pelas autoridades, pressionados por padres e bispos. A destruição da colheita é imputada às falas da garota, assim como as mortes durante a Primeira Guerra Mundial. Lúcia poderia ter recebido a visita do Diabo, despertando consequências semelhantes. Ironicamente, ninguém se preocupa com a mensagem tão importante quanto singela transmitida por Nossa Senhora: “Rezem pelo fim da guerra; o mundo precisa de paz”. Os habitantes se prendem ao privilégio de ter contato direto com a figura fundamental do cristianismo, manifestando inveja e desconfiança. “Por que ela apareceria logo para você?”, questionam. A menina passa a sofrer pressões psicológicas diárias, entre a chantagem e a ameaça velada. Os devotos são precisamente aqueles a duvidar da palavra infantil. O discurso sobre amor produz ódio, e o afeto oferecido a uma criança gentil a torna maliciosa aos olhos do povo. 

Os caminhos narrativos perversos de Fátima: A História de um Milagre (2020) decorrem de uma lógica que deve ser aceita sem questionamentos pelos espectadores crentes, embora soe estranhíssima aos céticos. A figura bondosa, belíssima e vestida de branco (interpretada por Joana Ribeiro) pede, com um sorriso materno nos lábios, que a pequena Lúcia (Stephanie Gil) “sofra muito”. De fato, a menina se converte em mártir, algo que talvez nos fizesse questionar o caráter altruísta da personagem transcendental que lhe oferece uma maçã envenenada e depois a deixa lidar com as consequências sozinha. (Cristãos enxergarão a parábola por outra perspectiva, é claro. Dentro do cinema, na sessão para a imprensa, um colega de profissão chorava copiosamente). Entretanto, os valores de resiliência, e de nunca negar a Deus são considerados prioritários. Ao fio dos interrogatórios e sessões torturantes, a protagonista hesita, mas mantém suas posições firmes. Adepto à lógica da fé, o roteiro jamais explica os motivos de a jovem ter sido escolhida pela Virgem; por que os encontros ocorrem em locais e horas precisos (a Virgem está ocupada no resto do tempo?), sem auxílio entre cada conversa; por que deixaria uma criança e seus pais sofrerem com a fome em decorrência desta aparição. Mas “Deus age certo por linhas tortas”; “Deus não dá um fardo maior do que podemos carregar”, alegaria a retórica bíblica, afiadíssima para responder às suas contradições internas. 

O projeto possui méritos notáveis dentro do gênero religioso. Primeiro, ele prega para convertidos, como de costume neste tipo de obras, porém evita demonizar o lado oposto, nem procura conquistar novos adeptos à causa. Os flashbacks que dominam a história são intercalados com uma conversa contemporânea entre a Irmã Lúcia (Sônia Braga) e o escritor Nichols (Harvey Keitel), numa oposição didática entre crença e descrença. Os atores estão bem dirigidos, e através de diálogos afiados, provocam-se amigavelmente. O acadêmico lança questionamentos baseados na lógica, recebendo respostas ancoradas na fé. Impossível chegar a um consenso, afinal, lutam com instrumentos distintos. Ao final, eles seguem amigos: o diretor Marco Pontecorvo foge à armadilha do maniqueísmo evidente quanto a Nichols, ao prefeito iluminista Arturo (Goran Visnjic) e à rígida mãe Maria Rosa (Lúcia Moniz). Estes agem por teimosia e medo, porém ganham oportunidade de revelar seu lado frágil sem necessariamente se transformarem em católicos fervorosos. O princípio de equivalência entre Lúcia e Nichols, ocupando metades exatas do enquadramento, e terminando o jogo empatados, comprova o respeito pela opinião adversa. O cineasta crê nas aparições e defende o Cristianismo, no entanto, abre-se à convivência com vozes divergentes. “Eu sempre fui fascinada por opiniões contrárias às minhas”, afirma a madre; “Algumas pessoas nunca acreditarão, mesmo que tenham Deus à sua frente”, explica a Virgem.

Esteticamente, o drama aplica as ferramentas comuns à representação do divino: as câmeras lentas, os planos aéreos (a divindade olhando para baixo em plongée; as crianças olhando para os céus em contra-plongée), a trilha sonora delicada de pianos a princípio, e de cordas em seguida. Os flares ocupam a fotografia; os sons do vento e das árvores dominam a banda sonora; enquanto os pequenos mensageiros de Deus vestem roupas claras, e os descrentes (prefeito, professor, bispos) se cobrem de preto. No entanto, o uso deste arsenal se faz discreto, em comparação com tantas obras religiosas insistentes, autoincumbidas de provar uma verdade e convencer o espectador. As melodias da trilha sonora se fazem raras e curtas; os figurinos são amassados, levemente desgastados, conforme caberia a crianças que os vestem diariamente (ao contrário das roupas recém-saídas das lojas, em filmes idealizados); e as aparições carregam poucos efeitos fantásticos. Em geral, a direção de fotografia aposta em tons ocres e dessaturados, em oposição à magia carregada da iconografia tradicional. Pontecorvo sustenta uma aparência realista na maior parte do tempo, permitindo ao transcendental invadir a vida cotidiana sem interrompê-la - caso das aparições da Virgem com multidões de seguidores ao lado, em sequências bem montadas e equilibradas com o restante da trama. Os efeitos visuais são moderados, e as metáforas desgastadas de pássaros e anjos aparecem em cenas pontuais. O filme nunca subverte os estereótipos do cinema cristão, mas impede que se tornem kitsch e espetaculares - o diretor concebe a chegada da Virgem como um instante íntimo, uma espécie de conversa entre amigos.

Em pleno século XXI, esta grande produção, falada em inglês e repleta de atores renomados - além de Sônia Braga e Harvey Keitel, Joaquim de Almeida e João d’Ávila ocupam papéis centrais - serve como ferramenta de sustentação à Igreja. Fátima: A História de um Milagre preserva a tese de que católicos correspondem a uma minoria perseguida por sua fé - uma versão de difícil defesa, especialmente em se tratando de Portugal. Caso se situasse em países muçulmanos de pequena parcela cristã, ou em nações nórdicas de predominância ateia, talvez a mensagem encontrasse maior respaldo social e político. De qualquer modo, a obra enxerga no catolicismo um grupo minoritário e resistente, face ao ceticismo que teria tomado conta do mundo - aquilo que, no Brasil, alguns pastores neopentecostais chamam risivelmente de "Cristofobia". O roteiro defende que o retorno de um soldado vivo da guerra se deve às rezas insistentes da família, sem perceber que isso culpabiliza todas aquelas outras que, apesar de rezarem, perderam os filhos e maridos mesmo assim. A meritocracia divina transforma a comunicação direta com a Virgem em signo de recompensa e luxo, ainda que a frase em defesa da paz soe irônica, devido à guerra despertada em torno de Lúcia. Se a aparição ocorresse hoje, é plausível supor que os prefeitos não tentariam desacreditar as crianças videntes, preferindo explorar o turismo, organizar caravanas à região, multiplicar as lojinhas de presentes. Além de representar o catolicismo de um século atrás, o drama retrata uma organização social extinta. 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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