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Sinopse

George e Margaret perdem o filho e deixam o seu idílico rancho para resgatar o neto de uma família perigosa. Ao descobrir que os estranhos não têm a intenção de libertar o pequeno, o casal decide lutar.

Crítica

Deixe-o Partir (2020) se inicia ao amanhecer, com um cavalo retirado carinhosamente do estábulo. Enquanto o animal inicia seus treinos, George (Kevin Costner) contempla a cena. A luz do sol toma conta da fazenda, e violinos aparecem na trilha sonora. Trata-se de uma representação bucólica da América profunda, onde convivem famílias patriarcais felizes em conjunção com a natureza. Ora, esta construção será progressivamente destruída ao longo da narrativa. O roteiro, baseado no livro de Harry Watson, passa a investigar as derivas desta “terra dos corajosos e dos fortes”. George e a esposa Margaret (Diane Lane) são confrontados a uma natureza perversa, seja ela humana ou selvagem, no seio de famílias nocivas. O drama se abre com o imaginário do comercial de margarina (ou, talvez, aquele dos caubóis da Marlboro nos anos 1950), para então implodir o sonho norte-americano. Vamos do idílio a algo muito próximo do cinema de horror: o filme demonstra prazer em, calmamente, retirar peça após peça sustentando a rotina do casal, até se descobrirem face à corrupção, à máfia, ao coronelismo e a todo tipo de abuso familiar e doméstico.

Este material poderia resultar numa demonstração grosseira sobre as mazelas da sociedade, no entanto, é louvável a calma do cineasta Thomas Bezucha na condução da trama. Ele desenvolve uma obra repleta de respiros e silêncios, onde os personagens se comunicam mais pelo olhar do que por diálogos. A cada novo baque na trajetória para recuperar o neto, o texto fornece algum instante de contato solitário com a natureza. A desesperança face ao ideal norte-americano se torna a costura permitindo reunir gêneros e subgêneros tão distintos quanto o faroeste, o road movie, o suspense, o drama, o filme de máfia e o terror. Estes registros se cruzam de modo orgânico, sem alarde nem sobressaltos. O diretor, mais conhecido pelas comédias adolescentes de pouca profundidade, busca demonstrar o talento para um cinema “adulto”, à moda antiga, bebendo na fonte do western incomum no cinema contemporâneo, porém adequado para discutir a fundação de uma nação cristã, conservadora e de viés colonialista. Sem criticar especificamente nenhum destes elementos, promove um duelo sangrento entre dois clãs, reclamando para si o direito à tradição e à propriedade.

Em termos de ambientação, o resultado é bem-sucedido. Há tanta beleza quanto conflitos na trajetória do casal. Em cada cidade por onde transitam, escutam insinuações a respeito do perigo da família Weboy, razão pela qual o espectador constrói uma imagem ameaçadora do clã antes mesmo de encontrá-lo. O texto privilegia desconfortos ao invés de violências explícitas – pelo menos, nos dois primeiros terços. A busca ostenta um verniz de cordialidade, tensionado ao limite da explosão. Bezucha faz questão de equilibrar seus símbolos: diante dos perversos Weboy, oferece a figura do introspectivo Peter (Booboo Stewart) para balancear a representação do caubói; e face ao pacifismo de George, encontra-se um policial oposto trazendo chantagens veladas. O filme não despreza o conceito da América, apenas a exploração desta para o acúmulo de posses e de privilégios. A este propósito, a dupla de protagonistas passa uma noite na prisão, sem ter cometido qualquer crime, enquanto os Weboy se encontram num casarão branco e tradicional, onde raramente se instalaria uma família de matadores em filmes de gênero. A direção permite nuances na construção de espaços e iconografias.

O trabalho do elenco demonstra outras qualidades do diretor, capaz de calibrar seus atores num registro contido, porém repleto de significados. Diane Lane foge à encarnação da mãe coragem (ou avó coragem, no caso) para se converter numa matriarca estrategista e proativa, face a um Kevin Costner emudecido, de gestos mínimos. Eles evitam tanto as lágrimas quanto os arroubos de ira, completando-se muito bem em cena através de mínimas flexões do olhar e dos lábios. A britânica Lesley Manville pareceria a última pessoa para interpretar a matrona sulista e grosseira, porém o faz com uma naturalidade impressionante em sotaque, voz e corpo. Este núcleo criminoso relembra aquele de Reino Animal (2010), onde Jacki Weaver encarnava a chefe da gangue. Aqui, Manville assume o controle ao longo de uma excelente sequência de jantar, transbordando de tensão. Em meio a tantos atores talentosos, Booboo Stewart se torna o elo mais fraco, insistindo na mania de apertar os lábios quando precisa sugerir fragilidade emocional. De qualquer modo, a relação entre este personagem e os pais simbólicos representados por George e Margaret resulta numa das melhores metáforas do roteiro.

Ao final, Deixe-o Partir constitui um belo estudo do luto. O pronome masculino do título se refere a pelo menos três pessoas diferentes, das quais se precisa abrir mão para seguir em frente. Quando aceitam o chamado à aventura, este herói e heroína idosos buscam inconscientemente efetuar o luto do filho falecido, preenchendo esta ausência com a presença do neto, de Peter e outros. O roteiro efetua belas aproximações entre a morte de pessoas e aquelas dos animais, sobretudo no que diz respeito à fábula do cavalo Strawberry. Para a surpresa dos protagonistas, eles precisam deixar partir não apenas o filho, mas também o conceito de família preservada pelos direitos constitucionais, garantida a todos os cidadãos. Reconfigurações do modelo tradicional serão necessárias para a sobrevivência do núcleo central. Nos dez minutos finais, Bazucha ameaça exagerar na trilha sonora, no uso do pôr do sol e no caos junto aos Weboy. No entanto, o clímax catártico serve como concretização de tantos dilemas meramente insinuados até então. Entre o drama, o suspense, a aventura, o romance e o horror, Kevin Costner e Diane Lane transitam com igual desenvoltura, demonstrando o prazer que o cinema é capaz de oferecer quando entrega a dois atores veteranos papéis adequados à sua idade e à sua competência.

 

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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