Crítica
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Sinopse
Uma família comanda um show itinerante de marionetes. A morte do patriarca impõe aos demais membros da trupe uma missão: manter vivo o legado de um homem que fez de tudo por sua arte.
Crítica
O francês Philippe Garrel tem passado por uma espécie de redescoberta assim que se confirmou a ascensão – de público e crítica – do filho, o astro Louis Garrel. Embora nunca tenha ficado muito tempo sem filmar, foram longas como Liberté, la nuit (1984), premiado em Cannes, e Já Não Ouço a Guitarra (1991), vencedor do Leão de Prata em Veneza, que fizeram do nome do cineasta um dos de maior potencial de sua geração. Essa promessa, porém, parecia ter ficado para trás. No entanto, após Amantes Constantes (2005) – que recebeu os prêmios de Direção em Veneza e no Lumiere, o troféu da crítica no European Film Awards e foi apontado como um dos melhores do ano pela revista Cahiers du Cinema, além de ter sido o primeiro estrelado por Louis, que ganhou por esse trabalho o César de Ator Revelação – o realizador voltou a despertar curiosidade entre os cinéfilos e profissionais da indústria. Foram mais quatro longas juntos, e após um hiato de dois projetos – Amante por um Dia (2017) e O Sal das Lágrimas (2020) – ele volta a convocar o herdeiro para marcar presença em Le Grand Chariot, que combina também participações das irmãs Esther (Me Chame Pelo Seu Nome, 2017) e Léna (Les Amandiers, 2022). Ou seja, é praticamente uma produção familiar. O que deixa, também, a sensação de que bastou convocar os talentos próximos, como se isso fosse suficiente para que, dessa união, algo relevante resultasse. O que não chega a ser exatamente o caso.
O 55º Festival de Brasília abriu sua mostra competitiva com o retorno do diretor pernambucano Taciano Valério, que com Espumas ao Vento (2022) acabou com um intervalo de quase uma década sem lançar um longa-metragem. Na trama, tentava resgatar a prática das marionetes através de uma turma de artistas tradicionais que precisa se reinventar após a morte do patriarca. O resultado – que inseria ainda outras discussões, como os efeitos da pandemia do coronavírus e a interferência da religião nos espaços culturais – dividiu opiniões. Pois é mais ou menos o que acontece, ao menos na intenção, com Le Grand Chariot – que em tradução literal seria A Grande Carruagem, ou algo similar. A expressão, obviamente, é figurada, e trata da empreitada relegada aos filhos após a partida dos mais velhos, aqueles que deram origem à realidade com a qual agora os que ficam tem pela frente. O pai (Aurélien Recoing, de Azul é a Cor Mais Quente, 2013) é o primeiro a falecer, seguido pouco tempo depois pela avó (Francine Bergé, de A Religiosa, 1966). Com a saída de cena dos dois personagens mais interessantes – ele pela paixão que demonstrava pelos fantoches, ela, pela carga nostálgica que oferecia ao todo – restam apenas os jovens, com sonhos diversos e objetivos particulares. O filme, que poderia almejar um caminho comum, se dissolve em múltiplas possibilidades, sem elencar uma para si.
A trupe fica à cargo de Louis (Louis Garrel, desinteressado e em cena como que por obrigação, pois não faz nada além do que dele já se espera), Léna (Léna Garrel, que não chega a receber momento algum de protagonismo) e Martha (Esther Garrel, que emprega com parcimônia uma imagem de fragilidade necessária ao derrocar deste sonho compartilhado pelos antepassados). Ele é o primeiro a partir – quer ser ator “de verdade”, e aceita o convite para atuar em uma peça teatral – restando às irmãs terem que se virar sozinhas. Há, nesse imbróglio, outro personagem, talvez o que merecesse maior atenção em cada um dos seus desdobramentos: Pieter (Damien Mongin, que não trabalhava com os Garrel desde Um Verão Escaldante, 2011). Ele é o espírito mais indomável, o que se deixa levar pelas emoções e pelo ímpeto de cada situação. Sua chegada à companhia enche a todos de esperança, mas este não é um homem de compromissos. Tanto está com eles, como poderá abandoná-los no instante seguinte.
Justamente por isso, Pieter é alguém que justificaria um olhar mais próximo. A narrativa até tenta se eximir de alguma culpa nesse sentido e, reconhecendo o quão rica essa figura poderia vir a ser, lhe concede passagens pontuais, como o término da relação com a ex-namorada, o nascimento do primeiro filho, o surgimento de um novo amor, a amizade que mantém com Louis, a importância que seu trabalho adquire para a manutenção daquela estrutura. Porém, são circunstâncias pontuais, jogadas a esmo, carentes de uma conexão forte entre elas. Uma vez presente, fica claro o quão instável é sua personalidade – seja no envolvimento quase imediato que passa a desenvolver com uma colega de trabalho, ou mesmo ao receber a proposta de se unir ao grupo de maneira fixa e o modo reticente como encara tal oferta – que todo o demais visto a seguir se torna redundante, como que para reforçar algo já sabido. Os desdobramentos dessas ações pioram ainda mais sua construção, pois transitam entre o clichê (o artista desprovido de senso prático e preocupado apenas com sua “obra”) e o canalha (a maneira como trata suas mulheres). Difícil simpatizar com um protagonista ao qual todas as piores decisões e características são destinadas.
Há muito sobre os ombros de cada uma das figuras centrais de Le Grand Chariot. No entanto, esses preferem ir empurrando com a barriga, esperando que a sorte (ou o azar) os mostre o que fazer, por mais óbvio que cada caminho se apresente – um bom exemplo é o destino dado ao Teatro de Bonecos, que só encontra fim por interferência natural, e não através de um conjunto de conclusões racionais. E assim, Philippe Garrel faz dos próprios filhos coadjuvantes de sua história, uma vez que a intrínseca relação que carregam já seria suficiente para mais de uma camada de interpretações a partir dos elementos aqui reunidos. Desprezando o óbvio e se ocupando em apenas transitar pela superfície, demonstra esforço em apenas colaborar com o mínimo, como se tudo além das insistentes reiterações fossem problema da audiência, e não daquele que deveria estar ciente de sua responsabilidade enquanto discurso. De nada adianta, afinal, uma carroça imponente, por mais sucateada que esteja, se não há cavalos saudáveis a ela ligados, capazes de levá-la a algum lugar. Qualquer um, independente do quão distante ou exigente, já seria melhor do que essa imobilidade apática e incômoda que toma conta da visão proposta.
Filme visto no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em fevereiro de 2023
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