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Sinopse

Um jovem se entrega ao vício em ópio após os movimentos estudantis de 1968 na França. Apaixonado por uma companheira de grupo, ele enfrenta a necessidade de recuperar-se e amadurecer ao mesmo tempo.

Crítica

Apesar da vasta filmografia, Amantes Constantes é o primeiro filme do diretor Philippe Garrel a chegar aos cinemas brasileiros. Suas premiações e o devido reconhecimento no cenário cinematográfico europeu não foram suficientes para torná-lo um nome exportável pela marca da Nova Onda francesa. Sem qualquer explicação clara ou difundida, o diretor acabou excluído tanto do primeiro time de diretores da Nouvelle Vague (Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut, Jacques Rivette e Jean-Luc Godard) como do subgrupo, denominado Rive Gauche, no qual estão presentes, por exemplo, Alain Resnais, Agnès Varda e Jacques Demy. Temos uma especial predileção pela comemoração. O espírito festivo fez com que dedicássemos todo o ano de 2008 a "homenagear" os acontecimentos passados em maio de 1968. Foi ao final de uma enxurrada de publicações, palestras e retrospectivas que – divididos entre o receio e a satisfação – percebemos não saber, afinal, sobre o que exatamente estávamos comemorando. Seria o espírito de uma época? Como poderíamos defini-lo? Seriam as transformações sociais ou o resultado delas que valeriam nosso reconhecimento? Seriam as sementes lançadas, os frutos colhidos ou ambos? Não costumamos imaginar um aniversário no qual estamos presentes e peremptoriamente descobrimos desconhecer o aniversariante. Ironicamente - e por trinta anos ser um leve sopro no fluxo da história - era exatamente dessa forma que nos encontrávamos.

Se ao nos aproximarmos historicamente ainda encontramos um ano que suscita dúvidas e gera hipóteses, e a aproximação pela via cinematográfica não é menos árdua. Pelo resultado apresentado diante da visão embaçada é que Amantes Constantes apareceu como filme definitivo sobre o Maio de 68. Utilizo o termo definitivo, sempre tão autoritário, por acreditar que a combinação de profundidade, acessibilidade e intuição preenchem da forma mais completa possível o leque de opções disponíveis para sintetizar e explicar dado momento; definitivo porque, assim como a Revolução que encontramos, impõe a dúvida ante a certeza. Philippe Garrel completara há pouco vinte anos quando o clima de 1968 tomou dimensões até então pouco imaginadas. Certamente por ter vivenciado um dos momentos mais importantes da história do século XX, nenhum dos personagens do filme é maior ou disputa atenção com os acontecimentos. Tal constatação pode ser percebida durante o primeiro ato do filme, tradicionalmente destinado à apresentação dos personagens, que desemboca nas plásticas sequências de ambientação. A Paris cartão-postal, símbolo do amor e do espírito blasé se exibe como um verdadeiro campo de guerra. As cenas das barricadas – em alusão ao dia 10 de maio, intitulado Noite das Barricadas – as explosões, a bandeira queimada, o orgulho dos estilhaços no peito e a resposta dos policiais à provocação do grupo de estudantes e civis no Quartier latin são apresentadas em um ritmo que permite o desenvolvimento e a apreciação dos detalhes.

A estrutura narrativa se divide em três capítulos: "esperanças fuziladas", "as lascas do desgaste" e "o sono dos justos". O título de cada uma das partes sinaliza sem indiretas a percepção do diretor sobre o movimento e seus participantes. Habitando nesse campo belicoso, acompanhamos o poeta François (Louis Garrel) desempenhando o mais clássico papel do homem de letras francês. Seu personagem não é suficientemente engajado para apoiar os amigos – em uma oportunidade, fraqueja ao tentar atirar um explosivo – e, ao recusar servir o exército francês, não se encaixa como partidário do governo. Sua postura contemplativa define com precisão o que seria essa classe de jovens que ideologicamente desabrigados careciam de conhecer os motivos pelo qual lutavam. A casa de Antoine (Julien Lucas) - local que nos remete diretamente à casa de Matthew e Isabelle em Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci, casal que provido pelo dinheiro da família financia marginalmente a Revolução - é a metáfora do espírito libertário que se propagava: conversas aleatórias, sexo casual e haxixe em abundância. Em uma das festas promovidas por Antoine, François se apaixona pela escultora Lilie. O casal torna-se retrato perfeito do momento, pois nada se associa tão intrinsecamente à liberdade quanto o mundo artístico. Entre uma poesia e uma escultura, François e Lilie vão deixando transparecer suas diferenças, detalhes que os constituem tão complexos quanto o mundo que os rodeia. Ele, altruísta; ela, egocêntrica. Ele, presente; ela, distante. A sensibilidade da poesia e a aspereza da forma esculpida buscando uma harmonia perfeita e impossível.

A fotografia em preto e branco dirigida por William Lubtchansky é um acerto fortíssimo. O qualificado trabalho desenvolvido na oposição de quadros claros e escuros, juntamente com o pouco movimento de câmera e as cenas de longa duração não pesam, mas intensificam a representação da humanidade latente a preencher – ou ausentar-se – expressivamente da tela. A ausência de cor serve também como efeito memorialístico, de distanciamento e como a emulação daquele sonho, dos justos e injustos. Os rostos de François e Lilie são bandeiras competentes dessa geração que não percebeu que o conjunto se forma essencialmente por indivíduos e que não poderia pretender reordenar o mundo sem primeiro entendê-lo.

Na época de seu lançamento, a comparação com Os Sonhadores, foi inevitável. Não bastasse o tema em comum e a proximidade de seus lançamentos, em determinado momento de Amantes Constantes, a invisibilidade da câmera sofre uma quebra e a referência a Antes da Revolução (1964), também de Bertolucci, é direta, estridente e irônica. Em nenhum dos filmes do diretor italiano, entretanto, o Maio de 68 tem expressividade própria como na obra de Garrel. Há um equilíbrio que Bertolucci não respeita. Ele gosta demais de seus personagens, daquilo que eles podem dar psicologicamente para construir a história. Por sua vez, Garrel sabe que seus personagens – personas suas – são psicologicamente produtos daquele momento, presos ao ideal libertário. Philippe Garrel poderia aproximar o espectador por dois caminhos. Ou retratava o momento histórico, a forma tradicional e objetiva, ilustrando uma sequência de fatos, ou poderia buscar no cinema – que junto à literatura é a mais propícia a isto – um caminho que remetesse à essência de 68: seus conflitos, dúvidas, vitórias e derrotas. Forte e delicado; corajoso e temeroso, Amantes Constantes tem muito em comum com aquilo que retrata. Ambos percorreram caminhos indistintos até se realizarem, surgindo de dentro para fora.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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