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Crítica

Desde o primeiro plano de Laços Humanos, o então estreante Elia Kazan demonstra preocupação em evidenciar anseios e conflitos, vinculando-os de maneira orgânica à difícil situação social em que os personagens vivem. Crianças aglomeram-se nas ruas, pois é sábado, ou seja, um dia sem escola. A infância parece feliz mesmo em meio à pobreza, à necessidade de crescer prematuramente para ajudar os pais a completar o orçamento da casa. Até mesmo a venda de sucata soa quase como brincadeira para Francie (Peggy Ann Garner) e o irmão Neeley (Ted Donaldson), ainda que não totalmente dissociada da malícia dos mais velhos. O garoto, por exemplo, manda a irmã negociar com o comprador, pois ele, o comprador, “gosta de apertar as bochechas das meninas”, numa dica sutil do diretor para que não encaremos aquelas crianças como seres inocentes que nada sabem do mundo.

Francie herdou do pai, o cantor e alcoólatra Johnny (James Dunn), uma maneira bastante peculiar de encarar as coisas, baseada em certa dose de esperança e negação. Já Neeley puxou bem mais à mãe, ela que está farta de trabalhar dobrado para sustentar a família enquanto o marido vive embriagado e nutrindo fantasias de melhora, sem ao menos esforçar-se para isso. São duas maneiras de ver a vida que estarão em constante conflito, sobretudo na cabeça de Francie, ela a verdadeira protagonista de Laços Humanos. É inegável que a personalidade solar faz do pai um personagem mais simpático ao espectador, em detrimento do mau humor constante da mãe. Mas, como julgar essa mulher que tem os dois pés fincados no chão, fazendo-se fundação familiar mais sólida, enquanto o marido vive de devaneios? Não há certos e errados, há singularidades.

A câmera de Kazan estuda os personagens sem complacência, mas deixa claro seu carinho por eles, não julgando suas ações, apenas se incumbindo de mostrar os fatores que desencadeiam esta ou aquela atitude. Francie, menina que venera o pai e não entende muito bem a rigidez da mãe, catalisa um pouco do comportamento de cada um, funcionando involuntariamente com elemento agregador da família em dificuldade. Até mesmo a tia Sissy (Joan Blondell), mal falada por casar-se diversas vezes, encontra nela uma mediadora para os conflitos com a irmã. Os anseios da protagonista mirim são, no mais das vezes, de cunho coletivo, para estranhamento do pai que insiste na necessidade dela almejar algo em benefício próprio. Mais adiante a escola nova será, enfim, esse desejo particular, uma via para o conhecimento.

Talvez o que faça de Laços Humanos um filme tão bonito seja a maneira como Elia Kazan demonstra a humanidade por trás de cada comportamento, da contradição de alguns discursos e do entorno social que oprime e endurece aos poucos. Nesse contexto, é emblemática a cena em que a avó de Francie, durante a leitura paralela que os netos fazem da Bíblia e de Shakespeare, fala sobre a principal diferença entre o velho continente e os Estados Unidos. Segundo ela, na América o filho pode ser mais que o pai, não está condenado à sua herança. Francie, então, tem plena chance de superar a tristeza da perda, a reconstrução de sua família com outra configuração, a eventual distância dos seus, e ir além do que os pais foram. O cinema muitas vezes barganha com nossa emoção, fazendo-a irromper por manipulação. Laços Humanos está longe desse cinema ordinário, pois ao invés de provocar nossa emoção, ele a conquista, genuinamente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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