Crítica


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Sinopse

Durante a maior parte de sua vida, a pintora Frida Kahlo conviveu com dores no corpo, retratadas em suas obras durante anos de reclusão. Uma apresentação de fantoches reconstitui a trajetória artística e pessoal da artista mexicana.

Crítica

“Ficção histórica para títeres baseada na vida e obra de Frida Kahlo”. A descrição inicial, incomum no cinema, se assemelha à sinopse que talvez constasse no folheto de uma apresentação teatral. Quantos filmes se iniciam com um resumo em forma de letreiro? Susana Catalina López Pérez é uma artista mexicana de ampla experiência na arte dos fantoches, decidindo retratar a vida da conterrânea Frida Kahlo por meio do recurso lúdico dos bonecos. São eles que dominam a narrativa em todas as cenas, aparecendo na sacola de indivíduos em live-action; comandando a ação sobre um fundo infinito; sendo vestidos e arrumados pela artista. Seria apropriado descrever La Última y Nos Vamos (2021) como uma apresentação de títeres filmada, ao invés de uma obra de cinema na qual por acaso se inserem os títeres. A preocupação com os objetos, bem construídos e detalhados, ultrapassa aquela dedicada à maneira de filmá-los. Resta saber se o espectador enxergará no filme apenas seu tema, ou a forma escolhida para representá-lo - em outras palavras, se ele se satisfaz com a oportunidade de um teatro filmado e abraça o cinema servindo como mero suporte documental para outra arte.

Para a ilustração da “vida e obra” da pintora, Pérez possui a intenção de ser clara, sucinta e acessível ao público familiar. Um leve palavrão (“pendejo”) é autocensurado e a menção à bissexualidade se faz discretíssima, assim como os prazeres do corpo. A protagonista apresenta-se diretamente ao espectador, rompendo a quarta parede e reforçando a artificialidade do processo. Ela narra o acidente durante a juventude, o tempo passado na cadeira de rodas, os primeiros quadros pintados, a paixão e a decepção com Diego Rivera. O espectador tem acesso ao mínimo de informações a respeito da artista, apenas uma cartilha de passagens básicas que seriam descobertas numa pesquisa rápida pela Internet. No entanto, este parece ser o objetivo do projeto: oferecer uma introdução a Frida às pessoas que sequer ouviram falar de sua existência, ressaltando a persistência apesar das dores, a genialidade mesmo pintando deitada, com aparelhos metálicos segurando sua espinha dorsal. “Por que quero pés, se tenho asas para voar?”, questiona a narradora em off. Estamos próximos da barreira eticamente contestável da romantização da miséria - algo comum nos retratos de artistas como Van Gogh, por exemplo. A sugestão de que o talento decorre do sofrimento pode ser lida nas entrelinhas. 

A elaboração estética constitui o ponto mais frágil de La Última y Nos Vamos. Filmado com recursos digitais de baixa qualidade, o filme oferece imagens pixelizadas, pouco apropriadas para registrar a variação de cores e luzes importantes aos quadros da pintora. Pequenas encenações com humanos em praça pública ostentam uma linguagem amadora em termos de enquadramento e montagem. Uma vez posicionados sobre o palco teatral, os bonecos têm seus traços ofuscados por uma luz direcional no teto, pensada para as artes cênicas, ao invés do cinema. Mesmo enquadrados em close-up, os títeres ficam com o rosto escurecido durante parte considerável da narrativa. Haveria maneiras criativas de filmar os bonecos (Quero Ser John Malkovich, 1999, que o diga), porém a direção se limita a posicionar a câmera de modo frontal e menos trabalhoso. Durante a apresentação musical, o dispositivo gira pelo cômodo e tenta “atravessar” a textura dos instrumentos musicais, num recurso que talvez tivesse caído na montagem de outras produções. Pérez e sua equipe brincam com o fazer cinematográfico com tal despojamento que se confunde com inconsequência e falta de rigor. Posto que os títeres dominam a narrativa, seria esperado que fossem iluminados e retratados com maior cuidado.

Em contrapartida, o curta-metragem traz ideias interessantes, apropriadas ao tipo de animação escolhido. Quando não se comunica diretamente com o espectador, Frida Kahlo conversa com uma caveira, símbolo fundamental da proximidade com a morte e precioso na cultura mexicana em geral. O fato de beber álcool com a companheira - o título original é traduzido como “a saideira” pela legenda brasileira - faz da morte uma presença amigável e constante. A cineasta retira o peso assustador da finitude, mas lembra que ela está por perto. Ao final, a estrutura se domestica novamente, quando entram em cena fotos reais da pintora para que o espectador possa compará-la com a personagem-fantoche. Por que tantos diretores e documentaristas insistem neste recurso desgastado, sugerindo que a representação precisa se completar pelo real, limitando-se a um decalque deste? Partindo de um recurso tão original quanto a biografia em títeres, há pouca criatividade no resultado final. A premissa poderia dar origem a belos desafios de mise en scène: o que os bonecos podem trazer que o live-action ou a animação computadorizada não trariam? Que forma de expressividade ou sugestões psicológicas seriam obtidas pelos objetos de madeira? Como a ludicidade destes personagens se contrasta com a violência dos acidentes e rupturas amorosas? Ora, o projeto está pouco preocupado com o diálogo entre diferentes formas de arte. Ele se contenta em funcionar como porta de entrada para um contato mais profundo, que o espectador interessado precisará buscar por si mesmo após a sessão.

Filme visto online no VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim, em agosto de 2021.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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