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Sinopse

A cinebiografia de Alexandro Jodorowsky explora as aventuras e as buscas da sua vida. Nascido no Chile em 1929, na pequena cidade de Tocopilla, Jodorowsky teve uma educação rígida e violenta. Apesar dos fatos serem reais, a ficção ganha vida com um universo poético que reinventa a sua história.

Crítica

O cinema se rejuvenesce quando Alejandro Jodorowski está por perto. Com sua presença, o tempo, que é a matéria a ser esculpida, reencontra o original e o inusitado; a surpresa e a vibração. Depois de 23 anos de ausência – quase uma orfandade desde O Ladrão do Arco-Íris (1990) – o retorno do diretor às telas não poderia ter sido mais empolgante do que o encontrado em A Dança da Realidade.

Filmado na litorânea Tocopilla, Chile, cidade natal de Jodorowski, o enredo do filme reconstrói a sua infância. Filho de imigrantes judeus ucranianos e resultado indesejado do abuso da mãe pelo pai, o que se vê nos primeiros anos de vida é a marca deixada pelo crescimento em meio à família desestruturada, ao abuso de poder – tanto das relações pessoais quanto do momento político – e ao preconceito pela condição de estrangeiro. Entretanto, o farto material biográfico não se transforma em uma cinebiografia tradicional. Nada em Jodorowski é tradicional. O que se tem aqui é o alcance dos melhores momentos da sua produção nos anos 70, tanto em Fando y Lis (1968) quanto em El Topo (1970) e A Montanha Sagrada (1973).

A Dança da Realidade é o trajeto do rompimento das ilusões. A Casa Ukrania é uma mercearia na pequena cidade de Tocopilla. Sem luxos, o emprego sustenta com qualidade a família Jodorowski, que desde a fuga da Rússia, quando perseguida pelos cossacos, prefere esconder suas origens. A figura do pequeno Jodorowski (interpretado com segurança pelo iniciante Jeremias Herskovits) cresce entre o desejo da mãe, de que o filho seja a reencarnação da alma iluminada do avô, e o desejo do pai, de que se torne um  homem viril, digno de impor respeito aos demais. Os anseios conflitantes moldam o jovem Alejandro, exposto frente à cruzada das ilusões, espaço da pureza infantil, contra a realidade, símbolo do mundo adulto.

Para construir a cinebiografia, o diretor não abre mão da estética surrealista. Jodorowski comparte a visão de mundo do movimento de André Breton, que teve seus expoentes cinematográficos com O Cão Andaluz (1929) e A Idade do Ouro (1930), ambos de Luis Buñuel. Talvez o único diretor vivo ainda a pensar e produzir nesse registro, Jodorowski reconstrói sua trajetória com o demarcado das cores primárias, com a trilha sonora intrusiva e a mise-en-scène propositadamente operística. Por vezes, o resultado nos remete à obra do diretor italiano Federico Fellini. No início, quando somos apresentados ao circo do qual Jaime (Brontis Jodorowski), pai de Alejandro, fez parte, temos a sensação de estar revendo 8 1/2 (1963) em cores. A impressão, porém, se desfaz. O cinema de Jodorowski é mais ousado e agressivo. O limite surrealista foi testado – nunca achado.

O ato inicial de A Dança da Realidade se preocupa em mostrar as agruras do jovem Alejandro. O mundo duro e cru se revelará pela experiência: a dor da rejeição materna; o sofrimento físico advindo da sofrível moralidade paterna; o sentimento de culpa pela morte de outra criança; a sensação atroz da injustiça; o rechaço do judaísmo pelas outras crianças. A infância é posta, então, como um sistema de aprendizados forçados, em todos os casos traumático e inevitável. Este primeiro momento chega ao fim com a clara tese panteísta do diretor, enunciada, inclusive, pela intromissão do próprio: nada nos é novo; somos o que nos acontece, e o que nos acontece é o que somos anteriormente.

O segundo ato tira o foco de Alejandro e o coloca sobre Jaime. O pai, misto de Stalin e Pinochet, abre mão da família para aniquilar Ibañez, ditador do país. A transição entre o primeiro e o segundo momentos não é a melhor possível. Paira o sentimento de que o personagem de Alejandro foi esquecido pelo filme. Algo no mínimo injusto, depois de tudo que o vimos passar. Contudo, o que está em marcha é a vontade do diretor de adicionar uma densa camada de crítica política. A atitude, coerente com a filmografia de Jodorowski, possibilita construir uma sintética história do totalitarismo no século XX. Originado na Europa, o mal se espraia sem conhecimento de fronteiras. A vida se desarticulada em todos os lugares, por mais longe que se esteja.

A cena das gaivotas e das sardinhas sugere que desconhecemos o profundo oscilar da existência. A compreensão do ritmo não nos pertence. O sofrimento e a felicidade não são independentes, mas substâncias necessárias para um equilíbrio. A vida de ninguém acontece unicamente na superfície. A indicação caminha em direção ao desfecho. No terceiro ato, Alejandro e Jaime se reencontrarão: “sou covarde”, brada o pai. A covardia que procurou exorcizar no filho salta-lhe à boca. Não querer falhar é falhar por antecipação. É falsificar a vida. A união agora é mais do que física. Pai e filho assumem e se reconhecem enquanto feitos da mesma substância. O ciclo se completa no encontro do que somos com o que seremos. Sem julgamentos, a justiça é possível.

A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu.* O perdão não provém com o tempo. O que resulta dos anos é o esquecimento. O perdão surge da compreensão. O fruto do esquecimento é árido e pegajoso; o da compreensão, puro e sagrado, como a hóstia – como a infância recuperada.

*Consolo na praia, de Carlos Drummond de Andrade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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