Crítica
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Sinopse
Kasa Branca tem como protagonista Dé, um adolescente negro da periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro. Ele recebe a notícia de que sua avó, Almerinda, está na fase terminal da doença de Alzheimer. Com a ajuda de seus dois melhores amigos, Adrianim e Martins, terá que enfrentar o mundo e aproveitar os últimos dias de vida com ela. Premiado no Festival do Rio 2024.
Crítica
No meio da crítica cinematográfica, a palavra “afeto” virou uma espécie de muleta. Talvez porque ela tenha a capacidade de resumir um conjunto de escudos que precisamos como nunca, afinal de contas vivemos em tempos de violências legitimadas e polarizações agressivas. Em alguns casos, fazer uso dela é somente uma forma preguiçosa de englobar outras coisas que poderiam ser mais bem elaboradas se houvesse maior disposição do autor. Mas, ao pensar em Kasa Branca, provavelmente nenhum outro vocábulo consiga expressar tão bem as relações estabelecidas entre os moradores de uma comunidade periférica do Rio de Janeiro como “afeto”. Então, é preciso partir dele, correndo o risco de reforçar o lugar-comum por falta de outro termo que sintetize o resultado dos esforços do diretor Luciano Vidigal. Ele defende a solidariedade e o senso de pertencimento como antídotos contra a loucura e os tantos obstáculos do mundo. O protagonista é Dé (Big Jaum), jovem desempregado que tem seus dias tomados pelo zelo com a avó que sofre do Mal de Alzheimer. Pobre, ele não tem condições de bancar enfermeiros e afins, então precisa assumir essa árdua tarefa de cuidador. Mas, se Dé não tem grana e tampouco pode arranjar um emprego, como manter o aluguel em dia e segurar a onda na hora de comprar os remédios caros que dão sobrevida digna à idosa? É aí que entram os amigos, a sua comunidade.
A batalha de Dé e Dona Almerinda (Teca Pereira) são o elemento que interliga todos os demais personagens de Kasa Branca, o centro gravitacional de um filme que transita por situações como se nos oferecesse fatias despretensiosas da vida. Os melhores amigos de Dé são Martins (Ramon Francisco) e Adrianim (Diego Francisco). O primeiro é um sujeito que tende a se indignar diante de problemas como a falta de atendimento numa unidade pública de saúde, é aquele que não pensa duas vezes antes de ir ao confronto se isso significar a proteção de quem ama. O segundo é o jovem filho da voluptuosa dona da academia local, dos três seguramente é o mais confortável financeiramente, tanto que chega junto quando Dé precisa comprar remédios com a “ajuda” do cartão de crédito da mãe (sem ela saber). Logo é criada a ideia de uma união aparentemente inquebrantável entre esses três, o tipo de conexão que vem desde a mais tenra infância e que vira argamassa quando eles precisam encarar seus dramas adultos. Uma das coisas mais bonitas do filme de Luciano Vidigal é justamente o desenho dessa amizade que está lá para todas as horas, que permanece acima de qualquer treta momentânea. Como quando Martins e Dé se estranham, mas se acertam quase que automaticamente depois do silêncio emburrado de ambos. E o diretor abrevia determinadas coisas, com isso dando dinamismo e frescor à narrativa.
Também autor do roteiro, Luciano Vidigal cria uma colcha de retalhos costurados ao mesmo tempo com precisão e leveza. Por exemplo, no citado momento em que Martins e Dé discutem no hospital por conta do lado esquentadinho do primeiro, ele não precisa mostrar os dois reatando a relação posteriormente, pois ela nunca esteve em risco verdadeiro. Vidigal já apresenta logo depois os amigos conversando com a mesma intimidade de sempre, assim não valorizando os eventuais conflitos entre os parceiros. Da mesma forma, quando Martins e Adrianim invadem uma drogaria para garantir o suprimento de remédio da Dona Almerinda, isso enquanto Dé abandona o seu posto de vigilância com medo da ronda da milícia, os dois poderiam ficar muito indignados com o “peidão” (palavras deles). No entanto, Vidigal prefere mostrar os prejudicados zoando o amigo, não forçando a barra que já está pesadíssima para o lado do menino que luta por sua avó. Esse artifício de não valorizar certos clichês do drama é um dos trunfos de Vidigal para criar uma experiência vigorosa que permanece focada na construção de afetos que nutrem a comunidade. E isso aparece no cuidado que os personagens têm uns com os outros. Quando o cineasta pula etapas óbvias no aguardado encontro com o pai ausente, é porque já havia mostrado a hesitação antes e provavelmente não se interessa pela surpresa.
Kasa Branca é um filme bonito que celebra os vínculos e as ações essenciais para o senso de comunidade na periferia. Engraçado e dramático em doses bem equilibradas, o longa-metragem ainda tem coadjuvantes bastante consistentes, como a mãe solo Talita (Gi Fernandes). Apesar das dificuldades para criar a filha pequena, ela sonha em prevalecer por meio de seu talento musical. Trata-se de uma personagem secundária com várias camadas, também ocupando o lugar de interesse amoroso de um dos protagonistas. Luciano Vidigal cria um grupo de pessoas que sobrevive por conta do amparo que umas oferecem às outras. Nesse ecossistema carinhoso, o importante é festejar as vitórias do outro e estar presente quando alguém precisar. Dentro disso há espaço para os amores queer existirem sem amarras, preconceitos ou julgamentos. O que é importante na cena do trisal na caixa d’água na laje, o tesão ou um possível espanto por conta do dado homossexual? A câmera de Vidigal valoriza o aspecto erótico depois relatado aos amigos como conquista orgulhosa. E ela é. E a Dona Almerinda representa as vulnerabilidades de todos numa chave simbólica. Luciano Vidigal fala de afetos, mas, talvez ciente de que a palavra está desgastada pelo uso excessivo, utiliza “cuidado” como sinônimo, criando em torno da idosa a rede de apoio extensível a todos os que dela precisarem. O título poderia ser Conta Comigo.
Filme visto na 11ª Mostra de Cinema de Gostoso em novembro de 2024.
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