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Sinopse

Julieta abandona seu marido infiel após ponderar partindo de visões, memórias e superstições.

Crítica

O mundo de Julieta (Giulietta Masina) é seguro. Esposa de um profissional bem-sucedido, ela vive numa casa confortável, pajeada por duas empregadas. É uma vida burguesa, na qual ela foi deixando-se embotar, sem perceber. A resignação da protagonista de Julieta dos Espíritos frente à frustração dos planos de comemorar o aniversário de casamento num jantar romântico é, antes de uma eventualidade, a tônica do recrudescimento de sua individualidade. A casa dela é tomada por toda sorte de gente excêntrica, que trafega pelos corredores como se eles fossem seus, tornando público um momento pensado para ser privado. Astrólogos, socialites, amigas espalhafatosas, a mãe e as irmãs vestidas de maneira chamativa, todos eclipsam essa dona de casa que parece ao mesmo tempo atordoada e acostumada a ser diminuída em sua discrição. Num destas brincadeiras de evocar espíritos, ela toma contato com uma dimensão que gradativamente confunde a percepção de realidade.

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Primeiro longa-metragem colorido de Federico Fellini, Julieta dos Espíritos, por um lado, é calcado no típico enredo da pessoa que, de uma hora para outra, percebe estar perdendo os rumos de sua vida, mais tarde entrando em conflito consigo mesma e com os demais em função disso. Por outro lado, carrega em sua narrativa a exuberância felliniana, com figuras exageradas em situações, no mínimo, insólitas, que colocam em xeque os limites entre o onírico e o real. Julieta começa a ver reminiscências literalmente adquirirem o status de fantasmas que atormentam seus dias. Isso ganha mais força a partir do momento em que ela descobre, não sem antes recorrer a uma equipe de detetives particulares, a infidelidade do marido. O paradoxo se instaura nesse ponto, já que o contato com a verdade faz irromper o sonho, o imaterial. O guru que Julieta consulta a aconselha investir no sexo, a, por exemplo, gemer de determinadas maneiras para segurar seu homem.

Em Julieta dos Espíritos a personagem principal se refugia no esotérico, no científico e, mais tarde, no prático, evidência do desespero que toma conta de quem necessita encontrar-se, melhor dizendo, reinventar-se. Até ela se deparar com a vizinha de farto decote e modos despudorados, cuja casa parece saída de um devaneio dionisíaco, o sexo, ou a falta dele, evocado anteriormente, repousa como se não fosse capital à frustração de Julieta. Mais tarde, percebemos a sublimação do desejo como peça-chave. Há dispersão em certas passagens, o que torna o filme, já relativamente longo em seus quase 140 minutos, por vezes refém da estagnação. Contudo, Fellini dá nova vida à trajetória de Julieta ao chocar o sagrado e o profano, mostrando que traumas do passado, principalmente um episódio da infância em que ela participou de uma encenação religiosa, contribuíram para sua apatia presente.

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Emoldurada pelos acordes de Nino Rotta, compositor que muito contribuiu com Fellini, Giulietta Masina, outra colaboradora contumaz, além de esposa, do italiano, interpreta com várias sutilezas essa mulher em crise existencial, que luta contra os fatos e os resquícios para conseguir dar os próximos passos. Julieta dos Espíritos passa a sensação de querer misturar todos os vieses, extraindo da massa disforme uma visão original do mote já bastante utilizado pelo cinema. Singularidade não falta a essa realização que, porém, se ressente de incisão em alguns fragmentos com potencial significativo, tanto do ponto de vista da dramaturgia quanto da imagem, ao passo em que se demora em demasia em momentos redundantes. Quando Fellini se entrega ao exagero, dando vasão à torrente de acontecimentos que embaralha real e sonho/visão, apresentando-os como irmãos siameses, o filme cresce excepcionalmente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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