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Sinopse

Jojo é um jovem nazista de 10 anos que tem Adolf Hitler como amigo imaginário. Seu maior sonho é ser da Juventude Hitlerista. Um dia, ele descobre que sua mãe esconde uma judia no sótão de casa. Depois de várias tentativas frustradas de expulsá-la, o jovem rebelde começa a desenvolver empatia pela nova hóspede.

Crítica

Muito se fala atualmente sobre o humor, seus limites e suas funções. Alguns lamentam as mudanças que tornam menos aceitáveis piadas ofensivas, por exemplo, de cunho misógino, homofóbico, racista e por aí vai. Mas a comédia, historicamente, é uma poderosa ferramenta dialética, sobretudo de afronta aos poderosos e ao status quo que os mantém quase intocáveis num olimpo praticamente inalcançável. Ela precisa estar, então, a serviço dos marginalizados, não devendo ser utilizada como instrumento de discriminação, mas, ao contrário, para equilibrar uma balança cujo contrapeso desproporcional causa dor e sofrimento. O cineasta neozelandês Taika Waititi transita num terreno minadíssimo em Jojo Rabbit, afinal de contas estamos falando de um filme que faz piada com a juventude hitlerista, além de tantas outras coisas, dentro de uma lógica fascista. Quem mais aceitaria o risco de tirar do papel, numa grande produção, uma história coadjuvada por Hitler?

O protagonista de Jojo Rabbit é Jojo (Roman Griffin Davis), empolgado pelo iminente início dos trabalhos num acampamento preparatório. Lá, as disciplinas envolvem o lançamento de granadas, a queima arbitrária de livros que supostamente possuem potencial subversivo, além do manuseio de armas brancas e de fogo. E Waititi extrai muita graça dessa insanidade com um delicioso sabor de caricatura cartunesca. A paródia, no entanto, não afina os contornos da crítica social embutida nessa visão repleta de apontamentos bem-humorados. O infantilizado Adolf (Waititi) é o amigo imaginário do menino encantado com a possibilidade de fazer parte de alguma coisa. Aliás, o todo-poderoso do Terceiro Reich é comparado, corajosamente, com Os Beatles na montagem de abertura que mostra a histeria dos fãs quando o Führer aparece, isso tudo emoldurado por uma conhecida canção dos The Fab Four. O alemão é, então, equiparado a astros midiáticos.

O primeiro terço de Jojo Rabbit é dedicado a esse treinamento absurdo. Nele há a apresentação de coadjuvantes bem delineados, como o carismático Yorki (Archie Yates) – um dos melhores sidekicks do cinema estadunidense recente –; o espalhafatoso capitão Klenderdof (Sam Rockwell); a instrutora “sem noção” Fraulein Rahm (Rebel Wilson); mas, principalmente, a mãe, Rosie (Scarlett Johansson), cativante pela forma como transborda carinho, ou seja, se colocando no terreno diametralmente oposto ao de seus compatriotas. Mesmo discordando do fanatismo cego do filho, alertando-lhe quanto à necessidade de deixar o fascismo de lado e dançar frequentemente sem motivo, ela acolhe a inexperiência do menino que precisará passar por provações a fim de finalmente entender o sentido amplo de humanismo e empatia. Essa consciência gradual e orgânica passa pelo contato do guri com Elsa (Thomasin McKenzie), judia escondida em sua casa. São impagáveis os inquéritos dele baseados em lorotas disseminadas para criar imagens negativas dos judeus.

Entrelaçando esses personagens com exímia destreza, Taika Waititi ainda demonstra seu talento como ator na pele do imaginário Adolf. São hilárias e bem distribuídas as suas intervenções, especialmente porque essa figura historicamente abominável é prontamente ridicularizada, surgindo como um sujeito frívolo e basicamente insuflado por uma mania de grandeza equivalente apenas à sua ignorância e megalomania. O humor, portanto, é ativado como dispositivo para relativizar a imponência de um vulto que segue pairando, volta e meia retornando, em lugares distintos, na pele dos incautos e/ou perversos seguidores contemporâneos. Na medida em que Jojo amadurece, processo intermediado pela adolescente que alimenta um afeto mútuo, o filme abraça vigorosamente os apontamentos dramáticos, eventualmente provocando fortes comoções pelo modo sensível de esquadrinhar a complexidade das conjunturas e dispô-las ao espectador. Há uma modulação bastante perspicaz, pois habilidosa, da comédia e da tragédia aqui desenhadas como irmãs.

Jojo Rabbit mostra a viabilidade de tocar desbragadamente em determinadas feridas, ora retirando seu combustível do que é passível de riso, ora abraçando vigorosamente uma jornada íntima que espelha, em vários aspectos, o tempo presente. O elenco está uniformemente bem, mas é necessário fazer um destaque para os trabalhos de Scarlett Johansson, Taika Waititi e Roman Griffin Davis. A primeira ilumina a tela com essa mãe guiada pela bondade, incansável no sentido de dotar o cotidiano de seu filho de afeto e com isso afasta-lo dos abismos do autoritarismo e da desumanidade. O cineasta/coadjuvante está excepcional como Adolf Hitler, exagerando em certos trejeitos justamente a fim de expor uma distorção bem-vinda. E o menino é uma enorme descoberta, um pré-adolescente cujo desempenho dá conta dessa fronteira entre a infância e o amadurecimento que bate à porta. Ele demonstra os dilemas morais sendo reorganizados pela vivência e o reconhecimento do outro. Há excertos convidativos à reflexão, outros ao riso frouxo, nesse filme que prega a valorização da diversidade, não a utilização dela como insumo para a construção de muros que nos isolem.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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