Crítica


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Sinopse

Famoso por ser um escritor de histórias western, Eugênio não goza do mesmo prestígio de antes. Seu personagem mais célebre, Jesus Kid, não vende como antigamente. Certo dia, Eugênio é contratado para escrever um roteiro a fim de levar Jesus aos cinemas.

Crítica

Barton Fink: Delírios de Hollywood (1991) provavelmente é um dos mais bem-sucedidos feitos dos irmãos Joel e Ethan Coen. Contratado para escrever roteiros hollywoodianos, seu protagonista é um elogiado dramaturgo nos anos 1940 que se perde em paranoias e absurdos. A razão principal da derrocada é o abismo entre criar para teatro e cinema. O personagem vivido por John Turturro mergulha num surrealismo alimentado pela visão ácida das engrenagens de uma Hollywood industrial que negligencia a arte. Para fazer isso, os realizadores norte-americanos utilizam excêntricos e peculiares que convergem numa lógica nonsense, cuja característica principal é o humor cáustico. Jesus Kid é baseado num livro de Lourenço Mutarelli que, por sua vez, nasceu de uma encomenda: ele precisava escrever algo baseado justamente no filme dos Coen, para isso ficando isolado num hotel. O cineasta Aly Muritiba não foge das relações imediatas com o longa-metragem estadunidense, pelo contrário. Ele faz questão de sinalizar semelhanças e celebrá-las com decalques. Por exemplo, Leandro Daniel obviamente interpreta uma cópia de carbono do personagem de Steve Buscemi da produção original. Ele é o recepcionista extravagante que personifica o hotel em que o protagonista de Paulo Miklos fica confinado – mesmo que o espaço não seja explorado como fator essencial para as confusões.

A proximidade entre Jesus Kid e Barton Fink: Delírios de Hollywood torna sedutoras e quase incontornáveis as comparações. E elas não favorecem o filme brasileiro. Aly Muritiba começa desenhando Eugênio (Miklos) – alterego de Mutarelli – como alguém conhecido por apenas um personagem, o cowboy Jesus Kid (Sérgio Marone) do título. Cortejado por um produtor histriônico que se acha dono de visões privilegiadas acerca da arte, em princípio ele declina o convite para escrever o roteiro cinematográfico. Contribui para essa desistência inicial o comportamento do diretor do projeto, sujeito pedante que parece um animador de auditório crente na própria genialidade. Aliás, se há uma coisa que Jesus Kid abraça vigorosamente é a construção humana exagerada, caricatural ao ponto de ser praticamente cartunesca. Assim como no filme dos Coen, aqui também esse excesso está pretensamente a serviço da crítica ao sistema repleto de figuras que se levam excessivamente a sério. Egos e distorções ocasionadas pelo sucesso também são ingredientes perceptíveis. No entanto, diferentemente do longa dos Coen, aqui não é consolidada a noção crescente de caos ao ponto de realidade e devaneio serem embaralhados. Aly Muritiba não intensifica o trânsito entre camadas (fato, ficção, imaginação, paranoia, etc.), tampouco demonstra com a comédia habilidade equivalente a de suas abordagens dramáticas.

O cineasta não isola personagens no contexto asfixiante da indústria moedora de criativos. O cinema não é visto como microcosmo de andamentos peculiares, pouco escrutinado como galáxia abarrotada de candidatos a planetas que nem sempre passam de poeira cósmica. O realizador brasileiro está demasiadamente preocupado em mostrar isso dentro de algo maior (mas, não como sintoma de). Neste caso esse sistema é o Brasil do obscurantismo bolsonarista. Em determinado instante vemos um outdoor celebrando o financiamento do banco estatal para a compra parcelada de armas; noutra, sobressai a paródia do militar que zela pelo departamento de censura. O milico tem como pano de fundo a foto do presidente (que parece, claro, com Jair Bolsonaro). O desejo de inserir a trama numa lógica atual atinge o seu ponto mais baixo na cena do recepcionista cumprimentando mecanicamente os recém-chegados à convenção no hotel. Nela, temos a piada com certo Queiroz (alusão ao laranjeiro Fabrício Queiroz, com direito à fala “você estava sumido, hein?”) e uma imitação do empresário bolsonarista Luciano Hang, sujeito careca e vestindo o chamativo terno verde e amarelo que caracteriza a figura conhecida como “Véio da Havan”. Os acenos ao Brasil da extrema direita seriam rubricas bem mais interessantes se servissem para determinar o contexto. Há dois mundos: o interno do autor em crise e o externo, também em crise. E eles caminham em paralelo, ocasionalmente acenando um para o outro, mas não formam um conjunto. A comunicação almejada entre eles é bastante superficial e ligeira.

Em Jesus Kid, o personagem de Sérgio Marone desempenha papel semelhante ao da cópia de Humphrey Bogart para o sujeito vivido por Woody Allen em Sonhos de um Sedutor (1972). Ele é a projeção que aconselha o protagonista para amenizar as suas inseguranças. Porém, é efetivo em apenas duas sequências ótimas, e ambas catárticas: a da explosão da convenção dos “coxinhas” e a do encerramento, no qual o tiro de financiadores/produtores/diretores/censores sai completamente pela culatra. O fato de ser um cowboy é somente justificado por representar um ideal de masculinidade – bonito, impositivo, capaz de defender a si e aos seus. No mais, essa menção ao gênero norte-americano por excelência é algo quase sem relevância. Se Jesus fosse um soldado, não mudaria tanto. Algumas das qualidades do longa de Aly Muritiba advém de concepções determinantes de Barton Fink: Delírios de Hollywood. Trazer essa lógica delirante para o Brasil de hoje é uma sacada excelente do cineasta que fez bonito Festival de Brasília com Para A Minha Amada Morta (2015) e venceu o Festival de Gramado com Ferrugem (2018). Mas, a escolha por uma sucessão de imitações/alusões talvez não tenha sido o melhor caminho, pois as cópias avacalhadas criam ruídos que enfraquecem a caminhada do protagonista rumo a um esgotamento. As paródias do Brasil militarista-cristão-elitista não são complementares, já que reivindicam a atenção principal. Há boas tiradas, momentos divertidos, mas falta organicidade na conjugação dos nocivos do entretenimento com os equivalentes da vida pública.

Filme visto durante o 49º Festival de Gramado, em agosto de 2021.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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