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Sinopse

Em Jardim dos Desejos, Narvel Roth é o meticuloso horticultor dos Jardins Gracewood. Ele é tão dedicado em cuidar dos terrenos desta bela e histórica propriedade quanto em agradar sua empregadora, a rica viúva Sra. Haverhill. No entanto, o caos invade o cotidiano de Narvel quando a Sra. Haverhill exige que ele aceite sua problemática e conturbada sobrinha-neta Maya como nova aprendiz.

Crítica

Narvel (Joel Edgerton) cuida meticulosamente dos jardins tradicionais da propriedade opulenta de Norma (Sigourney Weaver). O protagonista de Jardim dos Desejos é um homem de passado manchado que encontrou nesse relativo controle da natureza uma espécie de zona de conforto. No entanto, a sua movimentação em cena, o modo como se veste e até mesmo o seu corte de cabelo dão indícios de que estamos diante de um sujeito perigoso, daqueles que criam uma casca espessa para evitar que a pressão escape pelos poros. Há uma ordem quase militar no exercício de botânica e horticultura, sendo Narvel o líder das pessoas encarregadas de embelezar o ambiente para manter Norma como um membro proeminente e referencial da comunidade. O cineasta Paul Schrader cria um ambiente desconfortável pela movimentação da câmera, dos atores e das atrizes, mas também pelo uso da trilha sonora. Quebrando as expectativas de um espaço idílico, ele faz do jardim um campo de batalha silencioso, primeiro entre o homem a natureza que todos pretendem domar (ainda que por ela haja respeito) e, segundo, entre as diferenças das pessoas que transitam pelo local. O título em inglês, Master Gardner, contém a ambivalência que o genérico brasileiro desperdiça por completo em função da sonoridade. O original se refere tanto a um título conquistado quanto a ideia estapafúrdia de uma raça superior.

Paul Schrader oscila entre a sutileza e a manifestação escancarada de intenções ao construir Norma como herdeira saudosista de um estilo de vida supremacista, haja vista a forma como enquadra a varanda com cadeiras de balanço (cenário comum no sul escravagista dos EUA) e o jeito desdenhoso dela ao se referir à sobrinha-neta Maya (Quintessa Swindell) como “mestiça”. Aliás, quando Maya entra em cena, o realizador equipara o rígido Narvel a um dos seus personagens mais famosos, o Travis de Taxi Driver (1976) – Schrader é o roteirista do filme. Assim como o protagonista de Robert De Niro na obra-prima de Martin Scorsese, Narvel é o indivíduo carregando um fardo feito de pecados pregressos que vislumbra possibilidades de redenção ao encontrar uma jovem em apuros. Neste caso, incumbido de ensinar Maya o ofício da jardinagem (quiçá como tentativa de Norma para canalizar a inquietude da garota), o personagem principal de Jardim dos Desejos assume a função de tutor e protetor, sobretudo ao descobrir que Maya está envolvida com traficantes de drogas. No entanto, Schrader se esquece de desenvolver um pouco melhor a figura feminina, simplesmente jogando informações a seu respeito a fim de que Narvel aja. Assim, a garota se transforma praticamente numa donzela que precisa ser salva, enfraquecida inclusive como pessoa negra rodeada de supremacistas – o que gera pouca tensão.

Se formos um pouco mais atrás na história do cinema, Narvel tem um parentesco com Ethan, protagonista de Rastros de Ódio (1956), interpretado por John Wayne – o arquétipo é o mesmo “o regresso da ‘guerra’ encarregado de salvar uma donzela e com isso alcançar a redenção”. No entanto, Paul Schrader não mergulha na culpa carregada pelo personagem, tratando com certa displicência, por exemplo, a natureza penitencial da manutenção das tatuagens alusivas ao nazismo que ele esconde cotidianamente com roupas fechadas. Joel Edgerton compõe muito bem essa figura introspectiva que nunca conseguiu se livrar de um estilo gângster, alguém cujos trejeitos são milimetricamente calculados, outra maneira de conter a força destrutiva que ele mantém adormecida em busca da vida nova. Mais um ponto que carece de desenvolvimento: a relação complexa entre Narvel e Norma, a possessividade da moradora da casa grande que faz questão de exercer poder sobre o homem ao qual supostamente deu a possibilidade da segunda chance. Schrader perde oportunidades valiosas para investigar esse vínculo carregado de perversidade e simetrias profundas, com Norma claramente mantendo Narvel em rédeas curtas por meio de uma chantagem emocional implícita. Ao oferecer possibilidade de redenção, ela o subjuga. São várias possibilidades contidas nas entrelinhas, mas nem todas são bem elaboradas.

Jardim dos Desejos possui uma atmosfera opressora, fruto da capacidade de seu diretor de moldar os elementos cinematográficos ao ponto de sugerir situações e noções nas entrelinhas. Está longe de ser uma produção descartável, pois seus méritos são tão evidentes quanto as suas fragilidades. A despeito de ser estiloso e contar com interpretações condizentes com a proposta diretiva de enxergar as pessoas como figuras simbólicas, há alguns desfechos apressados e/ou gratuitos que depõe contra a sinuosidade percebida em certos segmentos. O principal deles é o envolvimento amoroso entre Narvel e Maya, algo que poderia ser colocado na conta de uma busca desesperada por alguém em quem confiar, mas que esbarra na sensação de algo forçado demais para fazer sentido. Já o ataque dos traficantes à propriedade cria a expectativa frustrada (ainda bem) de explosão furiosa por parte do cuidador que percebe a sua criação vulnerável (assim, o jardim se torna uma metáfora óbvia de Maya). Paul Schrader ora acerta na medida com sua visão pessimista de um mundo orientado por dogmas e discursos religiosos (culpa, redenção, sacrifício, perdão, amor reparador), ora erra ao não desenvolver apropriadamente os cenários subjacentes à ação perceptível na superfície. O resultado é uma produção irregular, poucas vezes memorável, repleta de boas ideias, mas com um pouco de desleixo na elaboração de tanta coisa.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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