Crítica


9

Leitores


19 votos 7

Onde Assistir

Sinopse

A psicóloga Nicoline começa a trabalhar numa instituição penal. Lá ela conhece Idris, homem inteligente com um distúrbio de personalidade antissocial e narcisista, que cometeu vários crimes sexuais graves. Após cinco anos de tratamento, ele está prestes a ter sua primeira liberdade condicional desacompanhada.

Crítica

Este filme se aventura por um limite tão eticamente delicado quanto a sua personagem principal, Nicoline (Carice van Houten). Quando a psicóloga começa a trabalhar numa prisão holandesa, ela imediatamente admira Idris (Marwan Kenzari) no palco com os detentos. A protagonista descobre que se trata de um estuprador em série, desprovido de remorso por seus atos. Mesmo assim, não consegue impedir a fascinação pelo homem de aparência gentil, e um tanto manipulador em suas falas. O filme estaria sugerindo uma bela história de amor entre uma mulher frágil e um psicopata? Ele romantizaria o suposto fetiche feminino pelo estupro? Ou estaria redimindo o criminoso através do amor? Existem diversas maneiras pelas quais esta premissa poderia levar a caminhos contestáveis. Mesmo assim, a diretora Halina Reijn consegue evitá-los, um a um.

Talvez os paralelos com Elle (2016) sejam inevitáveis, com a diferença que, no filme de Verhoeven, a protagonista (Isabelle Huppert) era estuprada inicialmente, para depois desejar a proximidade mórbida com o agressor. Outros filmes perversos estrelados por Huppert vêm à mente, a exemplo de A Professora de Piano (2001) – vide a dificuldade amorosa de Nicoline, e o fato de ainda dormir na cama com a mãe idosa e nua, de conchinha. Existe uma relação doentia da protagonista holandesa com o desejo sexual e com seu próprio corpo, algo que bebe no estilo perturbador de Haneke. O desejo (sexual) de se expor ao perigo aproxima a psicóloga do protagonista de Um Estranho no Lago (2013), que também buscava o contato com um criminoso potencialmente assassino como forma de autodescoberta. As pulsões de vida e de morte se misturam de maneira fascinante em ambos os projetos.

Instinto possui semelhanças com alguns dos melhores suspenses psicológicos do cinema recente, no entanto, ainda possui originalidade e um olhar próprio – até por ter sido dirigido e roteirizado por mulheres, ao contrário dos demais projetos citados acima. Primeiro, Reijn toma a precaução de situar a trama apenas no ponto de vista de Nicoline. Ignoramos o que Idris e os gentis colegas da prisão pensam sobre ela de fato. O projeto não deseja desenvolver a redenção do estuprador, e sim compreender que mecanismos permitem a atração da mulher por este indivíduo. Por isso, passa tempo considerável desenvolvendo a relação da protagonista com o próprio corpo, com seus fetiches, as roupas que veste, o que come nas refeições, o estado de seu apartamento. Ela é descrita ao mesmo tempo por sua eficiência profissional (vide a cena de abertura) e pelo desleixo com a comida e a limpeza em casa.

O roteiro faz questão de desenhar uma figura ambígua, multifacetada, que Carice van Houten interpreta muitíssimo bem – é difícil separar em cada cena o desejo, o asco e o medo por Idris, embora todos os três convivam em igual medida dentro dela. Ao contrário do estilo considerado perverso nos filmes de Verhoeven e Haneke, a diretora permite que sua trama chegue cada vez mais perto do realismo fantástico. Partindo de um naturalismo rígido, Instinto começa a abraçar cenas improváveis, extremas (o encontro no pátio vazio, o diálogo perto do coelho, a caminhada sobre a areia), que soam extraídas de um sonho. Ao final da trama, o espectador não terá conhecido a verdade dos fatos, apenas a verdade de Nicoline, pelos olhos dela. Talvez muitos dos momentos experimentados ao lado do detento não passem de fantasmas, delírios de uma mulher problemática, projetados em todos os personagens ao redor – a mãe, a melhor amiga, a jovem estagiária, o professor de educação física. O improvável dia em que a terapeuta e o paciente se vestem com a mesma roupa, e a inverossímil mensagem da mãe pós-clímax permitem a leitura fantástica.

Reijn desenvolve o princípio da gradação – os conflitos se repetem, se acentuam, até uma inevitável explosão – com uma elegância distinta da frieza. O enquadramento em scope é utilizado para espremer Nicoline nos cantos da imagem e mostrar sua inadequação dentro de um espaço maior. As trocas de olhares através da janela – tanto da protagonista quanto de Iris – sugerem o voyeurismo e o desejo inalcançável, enquanto um simples cômodo com as cortinas fechadas serve bem enquanto metáfora do que ambos os personagens escondem. Felizmente, Instinto é o tipo de filme que fornece mais perguntas do que respostas. Sugere-se que a violência faça parte de qualquer aprendizado social, que a agressividade seja um caminho a enfrentar por qualquer mulher que se imponha num ambiente machista, e principalmente, desenha-se um cuidadoso jogo de gato e rato no qual fica difícil determinar quem está manipulando quem, entre Nicoline e Idris. Ela detém o poder por estar livre, e por conduzir as sessões. Ele, no entanto, possui a confiança dos demais funcionários a ponto de ganhar liberdades preciosas para agir como deseja.

A conclusão se atém ao rosto dela, num momento de intensidade física e psicológica extrema. O filme se interrompe apenas quando ela deseja sair do enquadramento e abandonar o cômodo. Existe uma forma de respeito nesses enquadramentos, nesta relação com o corpo que jamais expõe a nudez dela, não a julga pelos fetiches nem a considera inferior a qualquer outro funcionário devido à postura distinta. “Ele é o detento que mais coopera, não existe motivos para se preocupar com Idris”, afirmam todos os colegas, contra a opinião isolada da nova terapeuta, crente em um perigo invisível aos olhares alheios. O espectador, então, é colocado na posição incômoda de testemunha silenciosa: apenas nós sabemos exatamente o que acontece com esta mulher ao se aproximar do homem “recuperado”. As noções de sociabilidade e de reinserção social são questionadas com uma inteligência ímpar pelo suspense que se recusa a enxergar a mulher tanto na posição de vítima quanto na posição de heroína.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

CríticoNota
Bruno Carmelo
9
Chico Fireman
5
MÉDIA
7

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *