Crítica


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Sinopse

Em 2017, está agendada uma apresentação em uma cidade pequena. Os jovens atores vão apresentar "Morning", do dramaturgo britânico Simon Stephens, pela primeira vez no Japão. A peça tem atraído atenção no mundo do teatro por sua história de violência entre dois melhores amigos. A performance é subitamente cancelada, mas uma atriz sugere que eles continuem ensaiando. Durante um mês, os jovens atores lutam entre a realidade e a ficção, bem como entre o cinema e o palco.

Crítica

Os atores se preparam para atuar numa peça... que não vai acontecer. Os letreiros iniciais sugerem ao mesmo tempo o início e o fim de uma história: jovens atores japoneses se preparam para a primeira encenação da peça britânica Morning (2012), de Simon Stephens, no país, mas o espetáculo será cancelado. Sabemos desta informação muito antes dos próprios personagens, que ensaiam ainda sem marcações precisas, sem figurinos, com receio de não dominarem plenamente os seus papéis. Eles temem que o esforço seja em vão, mas nós, testemunhas silenciosas, já o sabemos de antemão. O público é condicionado, então, a reler os esforços da trupe por um prisma melancólico. Os espectadores dentro do teatro jamais assistirão à peça, mas nós descobrimos em segredo o trecho da peça que nunca existiu. Enquanto nega a existência da obra de arte, o diretor Daigo Matsui, fascinado por filmes sobre a adolescência, cria uma obra sobre a não-obra, uma peça sobre a impossibilidade da peça. Na ausência do produto final, polido e refinado, promove o making of ao patamar de um curioso work in progress definitivo.

Ice Cream and the Sound of Raindrops (2017) chama a atenção pelos recursos formais empregados. O longa-metragem é construído a partir de um único plano-sequência, acompanhando os atores entre a sala de ensaio e os bastidores, pelas ruas e pelas coxias do teatro onde deveriam se apresentar. O plano contínuo poderia constituir um fetiche em si, seja pela dificuldade técnica, seja pela impressão de tempo real inerente ao procedimento. Não por acaso, muitas produções recentes realizadas em plano-sequência (Ainda Orangotangos, 2007, Victoria, 2015, Utoya: 22 de Julho, 2018) enveredam pelo caminho do suspense e da ação. Este é um dos aspectos mais curiosos do drama japonês, que emprega o plano-sequência apenas para romper com a percepção de naturalidade. Primeiro, o cineasta efetua amplos saltos temporais dentro do único plano único. Quando a atriz deixa a sala de testes, um letreiro informa que estamos uma semana à frente. A contagem regressiva rumo ao dia da apresentação permanece, ainda que os atores estejam conscientes do cancelamento do espetáculo. Mais de um mês de esforços é condensado na sequência unitária, de permitindo ver a evolução da trupe. Matsui cria ao mesmo tempo uma união e uma fragmentação do tempo narrativo.

Segundo, o cineasta funde os bastidores da peça com a encenação da mesma. Os atores jamais anunciam quando pretendem “entrar nos personagens”: apenas a mudança de janela (de 1.90 : 1 para 2.50 : 1) deflagra tal mudança. Enquanto a tela mais retangular se reserva aos ensaios de Morning, o formato mais quadrado traz os atores de volta à vida comum. Os recursos se alternam o tempo inteiro, ao longo de uma simples caminhada, por exemplo: a dupla de protagonistas conversa sobre a dificuldade de incorporar as indicações do diretor, e um segundo depois, passa a encenar. A mudança de tom é brusca: os gentis atores, repletos de afeto e boa vontade, passam a se seduzir, se provocar, a encenar assassinatos e brigas violentas. O jogo entre ficção e metaficção, ou entre teatro e cinema-sobre-teatro, desenvolve-se em qualquer espaço e sem aviso prévio, mesmo dentro de um banheiro público. O espectador tem sua atenção constantemente solicitada diante deste desafio aos atores, encarregados de mudar de registro a cada dois minutos. Caso errem, precisam improvisar e seguir em frente, devido às necessidades do plano-sequência. Mais do que formalismo, o recurso traz certa atmosfera de exercício cênico.

Matsui brinca de fazer um cinema extremo enquanto seus personagens brincam de fazer teatro. As duas linguagens se unem na disposição radical à liberdade – afinal, mesmo sabendo que a peça não vai acontecer, eles continuam a ensaiar. Assim como a trupe se nega a interromper a atuação, a imagem se nega a cortar o plano. Ambos recusam as ordens do dramaturgo/montador autoritário. “Nós podemos queimar o teatro, e nós podemos reconstruir o teatro queimado”, afirmam os jovens. O desejo de onipotência transborda no corpo destes artistas inexperientes, impregnando o filme com uma aura de rebeldia. Mesmo a trilha sonora se adequa à travessia de linguagens: inicialmente, escutamos um hip hop japonês bastante agressivo, em off, para então descobrirmos que o cantor e o músico se encontram no canto da sala, produzindo a música diegeticamente, ao vivo. Isso não impede que os atores passem por eles sem perceberem a presença da dupla, como se ela estivesse de fato fora de quadro. O labirinto de linguagens é vertiginoso, solicitando diversos pactos com o espectador apenas para rompê-los em seguida. Quando a atriz principal desce as escadas na pele de sua personagem, ela se vira para a câmera e dialoga com o espectador: “Isso é tudo verdade”. Ora, o que seria “verdade” se ela acaba de nos revelar o “falso”?

Ice Cream and the Sound of Raindrops (belo título sinestésico e pop) constitui uma deliciosa vertigem, ainda que a proposta do jogo interesse mais do que o jogo em si. Ao final do processo, teremos conhecido pouco sobre os personagens, e sobretudo sobre a peça que interpretam aos fragmentos. Algumas cenas supostamente catárticas, como o assassinato, se tornam menos potentes pela dissociação do contexto inicial. No texto de Simon Stephens, certamente o instante se justificaria melhor. Em paralelo, as obrigações de continuidade do plano-sequência impedem o filme de trabalhar em detalhes as luzes e o som. A trupe é mergulhada no escuro caótico em determinadas passagens; o volume das conversas se torna desigual em seguida, e a correria entre escadas e prédios dificulta o controle dos enquadramentos. Matsui privilegia o imperativo do movimento, a obrigação de continuar a qualquer preço, em analogia à decisão de seus personagens. Assim como os adolescentes, chega a um resultado cru, de pouco refinamento formal, porém transbordando em energia juvenil. “Cinema é merda, TV é merda, teatro é merda, arte é merda. Todo mundo quer uma mensagem, mas aqui não tem nenhuma”. A frase lançada aos berros sintetiza a entrega total, talvez imatura enquanto reflexão, porém fiel à ideia de um trabalho sem concessões. O filme representa através da forma o vigor de seus personagens, tornando-se um novo personagem misturado à trupe. Ao mesmo tempo, jamais fornece uma digressão complexa sobre o trabalho artístico, nem sobre a conexão entre cinema e teatro. A versão fracassada de Morning e a versão bem-sucedida de Ice Cream and the Sound of Raindrops possuem valor por si próprias, um valor retórico de se impor, de existir. Trata-se de um filme-performance, um filme-happening, uma arte que valoriza o gesto acima do tema.

Filme visto online no We Are One: A Global Film Festival, em junho de 2020.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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