Crítica


7

Leitores


15 votos 8.2

Onde Assistir

Sinopse

O Gato de Botas finalmente compreende que sua inclinação pelo perigo pode ter severas consequências. Após queimar oito de suas nove vidas, ele embarca na sua mais importante aventura em busca do tempo perdido.

Crítica

O herói obsoleto se tornou constante no cinema realizado nos últimos anos. Até personagens supostamente infalíveis e “maiores do que a vida”, tais como James Bond, vêm enfrentando a dura realidade do fim dos tempos áureos. Além disso, a idade e a consequente proximidade da morte pesam para todos, inclusive aos sujeitos considerados intocáveis. Em Gato de Botas 2: O Último Pedido, o intrépido Gato de Botas (voz original de Antonio Banderas) recebe um diagnóstico terrível depois de salvar novamente o dia numa cena empolgante. Ao morrer pela oitava vez, o felino é avisado de que a próxima passagem será a última. Disso em diante, temos alguém que começa a temer a morte, sobretudo depois que a encarnação lupina e macabra da inevitável teima em persegui-lo para acelerar esse processo do fim. De uma hora para outra, o aventureiro feito com elementos de contos de fadas e de histórias de capa a espada percebe que o melhor a fazer é abandonar os hábitos perigosos e tentar recomeçar em outro contexto, como animal domesticado que sobrevive longe das emoções. É mais ou menos o que acontece com o protagonista de O Lutador (2008), vivido por Mickey Rourke, homem que precisa se aposentar da atividade amada e se contentar com a rotina pacata para manter o coração batendo.  Em ambos os casos a pergunta implícita é: vale seguir vivendo se não houver paixão?

Mesmo que mire o público infantil como um alvo prioritário, Gato de Botas 2: O Último Pedido é uma animação bem-sucedida quanto ao desenvolvimento dos personagens e da jornada que os unifica. Primeiro, o animal que enterra as insígnias de seu passado e gradativamente aprende a ser um bibelô de estimação com teto e comida garantidos. À medida que é domesticado, o Gato de Botas perde a aura de valentia que o tornou heroico para alguns povoados e também um valioso procurado pela lei. Numa balbúrdia felina na casa da senhora que adota bichanos, o protagonista conhece seu carismático futuro sidekick – coadjuvante que existe para ajudar o personagem principal a cumprir a sua missão ou jornada. Perrito (voz original de Harvey Guillén) é um cachorro com zero pedigree que se fantasia de gato para conseguir alimento e moradia. É notória a sua gentileza, bem como a forma positiva e altruísta de encarar a realidade que aos outros parece tétrica. Os diretores Joel Crawford e Januel Mercado apontam esse pequeno e desgrenhado cachorro como capaz de ensinar ao Gato de Botas uma lição valiosa de humildade, uma chave para ele começar a valorizar a vida sem perder ternura e coragem. O longa-metragem costura habilmente esses simbolismos, dando ênfase especial à renúncia do bichano espadachim, à novidade do medo diante da ameaça do Lobo (voz original de Wagner Moura).

Gato de Botas 2: O Último Pedido insere pontualmente outros elementos de contos de fadas enquanto desenvolve a disputa entre os personagens que desejam encontrar a lendária estrela cadente no coração de uma floresta não menos fantástica. Todos estão em busca da realização de seus desejos. Uma das opositoras do Gato de Botas é a Cachinhos Dourados (voz original de Florence Pugh), jovem que avança na companhia da família de ursos que a adotou como se ela fosse ursa também. No entanto, o grande vilão é João Trombeta (voz original de John Mulaney), ganancioso colecionador de artefatos raros que deseja adquirir toda a magia do mundo. Com cara de criança e corpanzil de adulto, ele se assemelha ao Rei do Crime do Universo Marvel. Aliás, além das citações iconográficas aos contos de fadas – do sapatinho de cristal da Cinderela ao grilo falante de Pinóquio –, o longa-metragem distribui alusões cinematográficas. Em determinado momento, João Trombeta persegue oponentes num veículo que parece ter saído de uma versão alternativa da saga Mad Max; num instante de transição, os personagens perambulam por cenários semelhantes aos consagrados nos faroestes norte-americanos; e, próximo ao fim, surge um duelo evidentemente alusivo à famosa cena do cemitério em Três Homens em Conflito (1966). Essas piscadelas ao público adulto são bonitas e espertas.

Privilegiando os personagens durante os seus trajetos de amadurecimento, Gato de Botas 2: O Último Pedido faz mais do que repetir velhas fórmulas desgastadas a fim de capitalizar sobre personagens coloridos/fofos anteriormente apresentados ao espectador. Há substância na conscientização do protagonista sobre as necessidades de assumir responsabilidades, de ser confiável e compreender que é possível tirar coisas boas das várias fases da vida. O surgimento de Kitty (voz original de Salma Hayek) oferece dilemas emocionais ao fora-da-lei narcisista que gradativamente percebe a beleza de dividir problemas e felicidades com amigos e amores. Aliás, a celebração da diversidade familiar (vista no trio/núcleo principal) também está no anseio de pertencimento da Cachinhos Dourados. Nas entrelinhas, o filme defende que família é acolhimento e amor, não algo garantido por vínculos sanguíneos e fenotípicos. Bem elaborada e apresentada por meio de uma textura de animação diferente, a ação enfatiza a vitalidade dessa aventura que emoldura os discursos atrelados aos ensinamentos e afins. O filme começa reivindicando o status de contos de fadas e termina com morais da história conectando personagens dotados de camadas e dimensões. O resultado surpreende pela ambição (e maturidade) diante de temas difíceis (como o medo da morte), sem com isso prejudicar a diversão numa trama com gatos, humanos, ursos, cães e seres fantásticos aprendendo sobre a beleza de fins e recomeços.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deMarcelo Müller (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *