Crítica


4

Leitores


3 votos 8

Onde Assistir

Sinopse

Pessoas que gravitam em torno da estrela Britney Spears avaliam sua carreira enquanto ela protagonizada uma disputa judicial para retomar as rédeas de suas vidas pessoal e profissional.

Crítica

É importante começar esclarecendo alguns aspectos a respeito deste filme. Primeiro, ele endossa uma tese clara a respeito do regime de tutela sob o qual Britney Spears vive há doze anos: de acordo com a diretora Samantha Stark, a cantora tem sua liberdade limitada pelas escolhas autoritárias do pai, sujeito pouco afetuoso que buscaria se beneficiar da fortuna da filha. Em outras palavras, o documentário representa um manifesto do movimento #FreeBritney, escutando fãs, amigos e colaboradores que compartilhem esta avaliação do caso. Nos letreiros finais, a cineasta esclarece que tentou conversar com os familiares da protagonista, além da própria cantora, mas não obteve resposta. É compreensível que a parte adversa tenha rejeitado a participação num projeto munido de teses prontas, buscando referendá-las através de suposições e depoimentos de terceiros. Nesta narrativa, indícios sólidos de abuso de autoridade são misturados a fofocas e especulações a partir de fotos em redes sociais. Tudo vale para corroborar a tese defendida pela direção.

Segundo, The New York Times Presents Framing Britney Spears (2020) constitui, conforme atesta seu título original, um produto jornalístico. Trata-se de um telefilme, parte de uma série de documentários biográficos realizados pelo jornal norte-americano. Desta maneira, ele assume sua vertente de reportagem destituída de ambição artística. Para a nossa surpresa, ao invés de uma roteirista, o filme conta com uma “editora-chefe”, Liz Day. Em consequência, o projeto investe numa estrutura convencional, intercalando dezenas de entrevistas com escasso material de arquivo. O ritmo frenético lembra os programas de televisão, frutos desta época quando se tem medo que o espectador pule para outro canal, ou abra uma aba diferente em seu navegador de Internet. Em meio à ágil sucessão de imagens, uma das principais reflexões diz respeito ao papel nocivo dos tabloides. Stark sugere que a presença invasiva dos paparazzi e a sede por polêmicas a respeito da cantora teriam sido determinantes em seu declínio emocional. Ela critica o sensacionalismo e a falta de empatia de veículos que faturaram milhares de dólares em cima da crise pessoal e familiar de Britney Spears.

Ironicamente, o documentário adota um tom próximo àquele dos tabloides que critica. A personagem é reduzida à posição de filha problemática e artista de psique frágil. A direção aponta dedos aos veículos que jamais investigaram a situação emocional da artista, nunca tentaram entender a relação conflituosa com o pai, nem permitiram que ela se expressasse por si mesma. Ora, esta vídeo-reportagem de 2020 se pauta pela sucessão de escândalos, incluindo fotos de Britney Spears com o cabelo raspado e atacando o carro de um fotógrafo, além de inúmeras capas de revistas pop com especulações bombásticas sobre os casamentos, divórcios e internações. No entanto, jamais preenche as lacunas acusadas em terceiros: continuamos sem saber de que males padecia a jovem, ou em quais termos ela se relacionava com o pai. Personalidades do YouTube, incluindo duas jovens autoras de um podcast sobre o Instagram de Britney Spears ganham a oportunidade de especular a respeito da vida dela, porém nenhum psicólogo ou estudioso do meio musical o faz. Stark permite que intrigas e teorias da conspiração se misturem às evidências, prejudicando a credibilidade de sua argumentação.

O principal incômodo diante de Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela provém da leitura da protagonista enquanto objeto, ao invés de sujeito. O filme se constrói na terceira pessoa, a partir de impressões e episódios narrados por outros. Stark se interessa somente pelas entrevistas de Britney Spears quando a cantora cai no choro, ou quando se exalta: busca-se a catarse para reforçar a tese de exaustão emocional. Devem existir inúmeras provas do abuso de autoridade legal do pai sobre a filha, além da vontade desta em sair do regime de tutela, no entanto, nenhuma evidência é apresentada. Para um trabalho de investigação jornalística, é problemático que o espectador se depare com uma enxurrada de rumores. Visto que todas as vozes convergem à mesma mensagem, somos levados a acreditar nesta versão marcada por muita convicção e poucas provas. Fala-se pouquíssimo sobre as músicas, a ascensão como dançarina e criadora, a relação com os fãs e outros elementos fundamentais para compreender a origem do ícone pop. Nesta disputa de narrativas, o New York Times se lança com a voracidade de um veículo caça-cliques, apresentando pouco embasamento às graves insinuações.

É provável que o maior interesse da obra provenha de sua leitura enquanto sintoma do jornalismo e do cinema documental mainstream em tempos de crise. Samantha Stark e a equipe de repórteres do prestigioso jornal contentam-se em jogar lenha na fogueira, sem apresentar qualquer informação nova, ou indício permitindo observar esta história por outro ponto de vista. Documentários criminais e biográficos como A Máfia dos Tigres (2020), Eu Te Amo, Agora Morra (2019), Leaving Neverland (2019) e Cena do Crime: Mistério e Morte no Hotel Cecil (2021) operam em chaves igualmente sensacionalistas, no entanto fundamentam sua narrativa com substancial pesquisa e análise de dados. Já Britney Spears fica relegada ao ponto de vista dos fãs, dentro de um filme que oferece o palco a pessoas ressentidas e envolvidas demais no caso para apresentarem qualquer distanciamento – seja a grande amiga demitida do posto de assistente, o advogado retirado do caso contra a sua vontade ou a advogada que participou da decisão sobre a tutela apenas num primeiro momento. Stark menciona pontos essenciais, a exemplo do machismo da mídia e do moralismo do público norte-americano quanto à sexualidade da cantora. Infelizmente, estes questionamentos nunca são desenvolvidos. A diretora fica presa à forte vontade de acreditar em sua tese pessoal e de nos convencer pela intensidade de sua fé (no sentido estrito da palavra). Já a batalha legal e o complexo caso psicológico permanecem um mistério.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deBruno Carmelo (Ver Tudo)

Grade crítica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *